fotos e texto por João Henrique Motta.
Na noite daquela quinta-feira, dia 12 de março de 2020, o artista estadunidense Santiago X exibiu o vídeo da obra “ATICINTOLOCA: Man and The Black Snake” para um auditório cheio no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte (CCBB BH). A performance do artista indígena-futurista, natural das nações Kossati e Chamoru, recria a experiência da formação de montanhas a partir da projeção das curvas de nível em um ambiente de realidade mista: digital e físico. A experiência da gênese do relevo gerou identificação imediata para habitantes de um país cheio de serras.
Santiago X, ou Santi, foi o mentor que guiou cerca de 20 artistas brasileiros, reunidos em Belo Horizonte para participar do programa de residência internacional em arte digital American Arts Incubator, em meados daquele mês de março de 2020. Aquela era a primeira vez de Santi no Brasil, e a experiência da residência foi dividida em duas partes por um inesperado momento histórico do nosso século: o início da pandemia do novo coronavírus.
A obra que Santiago nos apresentou durante aquele encontro é uma referência ao mito da criação das montanhas do território de seu povo. À medida em que ele deslocava, com as mãos, alguns montes de areia dentro de uma espécie de caixa, uma projeção desenhava novas paisagens, acrescentando picos, depressões, planícies e serras. O verde, o azul, o vermelho e o amarelo, cores características desse tipo de mapa, coloriam a imagem durante todo o tempo em que ele remexia sua obra.
Era possível perceber, então, a importância do elemento “terra” dentro do trabalho do artista. Uma concepção ocidentalizada poderia, certamente, se limitar às características geológicas do solo. Mas aos olhos dos que têm uma relação mais profunda com a natureza do local e a terra em si, foi certamente impactante testemunhar àquela materialização de uma cosmovisão sendo ativada por meio de aparelhos tecnológicos.
Lembro-me de que perguntei a Santiago, naquela ocasião, sobre quando ou como ele havia incorporado ao seu trabalho o termo “indigenous futurism” (futurismo indígena), e ele disse algo do tipo: “Minha relação com o futurismo é resgatar a conexão com a minha terra (earth) e com os saberes dos meus ancestrais, para contar as nossas histórias a partir da arte. Continuo contando histórias sobre a vida e a memória do meu povo, também em uma realidade aumentada”.
Em sua produção, o artista utiliza múltiplas plataformas para dar vida a ideias e estabelecer conexões com outras pessoas. Não por acaso, naquela mesma noite, a presença de uma turma de estudantes do curso de Paisagismo da UFMG contribuiu para um encaminhamento muito genuíno da ocasião: conhecer e ouvir as palavras de Santiago. Eu também precisava ouvi-lo e conhecê-lo. Foi lindo, e ali senti que a residência seria uma experiência fértil para questionar quase tudo.
Após a abertura do AAI, algumas pessoas foram a um bar perto do centro cultural para celebrar aquele começo. Santiago X, seu assistente, Sandro, alguns profissionais da produção e também um grupo de participantes da residência, dentre os quais as arquitetas Roberta Silvestre, Kyvia Salles e eu. Ainda não sabíamos disso, mas formaríamos, mais tarde, o mesmo grupo de trabalho – Grupo 4.
Juntos, brindamos, bebemos e comemos.
PRIMEIRA PARTE
O primeiro encontro com todos os participantes da oficina se deu no final de semana seguinte. Inicialmente, nos apresentamos e expusemos os objetos que queríamos materializar em um mundo de realidade imersiva. Foi intenso.
Demos, então, os primeiros passos com as ferramentas que utilizaríamos para criar, em grupos, obras e instalações direcionadas a uma exposição em uma das salas do CCBB BH. Uma discussão sobre o conceito de “realidade” introduziu os pontos que deveríamos contemplar em nossos futuros trabalhos: desigualdade econômica e proteção do meio ambiente.
Somente nos últimos cinco anos, o território de Minas Gerais sofreu dois dos mais graves crimes ambientais do mundo: o rompimento das barragens da Samarco e da Vale,
que destruíram muitas vidas em Bento Rodrigues e Brumadinho, gerando consecutivas tragédias e sucessivas violações sobre os modos de vida de famílias e cidades inteiras.
Até a sexta-feira daquela semana, no entanto, Belo Horizonte entraria para a longa lista de cidades do mundo em que as autoridades municipais decretaram o fechamento do comércio e orientaram as pessoas a permanecer em casa, seguindo recomendações sanitárias de especialistas.
No primeiro momento, a conversa era sobre lavar as mãos. Com a interrupção das atividades do CCBB, o American Arts Incubator foi adiado.
O MUNDO EM QUARENTENA
Na Itália, as mortes eram 700 e tantas por dia. Quase mil pessoas morrendo, por dia, em um país onde todos os mitos civilizatórios dos sistemas políticos, de economia e de saúde pareciam ter fincado pé na razão. Mas nem tudo é o que parece. Mais adiante, o primeiro ministro britânico, até então negacionista em relação à transmissão global da doença, contrai a COVID-19.
Fechamento de fronteiras, fechamento de estabelecimentos, fechamento de casas. O mundo estava se esvaziando, e o continente europeu era o novo epicentro da doença. O mundo material foi contaminado. E hoje, a pandemia, seguindo seu curso natural, assola o nosso continente: a América do Sul.
Liguei para os meus amigos. Com certeza, por muito tempo, vou me lembrar desse dia. E também daqueles números solitários. 15 mortos. Era sábado. Depois de alguns dias, o cenário da pandemia seria como o de um filme de terror: cemitérios cheios de gente vestindo parafernálias plásticas para conter a transmissão do vírus.
Quem pode, fica em casa. Alguns ainda saem. Outros tantos insistem em promover aglomerações. A maioria precisa conseguir o que comer e, para isso, precisa estar fora. Nem todos conseguem se proteger dessa onda violenta.
Ainda estamos em choque? Ou nos acostumamos com o choque? Será que ele simplesmente passou? O que está acontecendo? As mortes aumentaram e não param de aumentar.
Como foi possível chegar até aqui? Erramos? Onde erramos? Está errado. Como consertar? Imaginar qualquer possibilidade de futuro nos faz flertar com o surreal, logo abaixo da Linha do Equador.
“De onde viemos? Para onde vamos? Essas perguntas importam agora?”
Essa é a mensagem inicial de “HABITAR”, trabalho coletivo que resulta de uma colaboração entre as arquitetas Roberta Silvestre, Kyvia Salles e eu, João Henrique Motta, um jornalista. As provocações do trabalho buscam oferecer perguntas sobre a realidade – e também sobre a possibilidade de criação de futuros.
A experiência coletiva que compartilhamos foi pautada por um processo muito particular de correspondência de ideias entre o grupo. Nós nos ouvimos, paramos, conversamos e decidimos juntos sobre o que criar. A partir da complementação de habilidades, chegamos a alguns consensos e partimos, enfim, à operação de ferramentas visuais e digitais, assim como ao desenvolvimento de conceitos e narrativas.
Quando o JA.CA nos comunicou por e-mail sobre a possibilidade de retorno da residência, agora de maneira virtual, respeitando as normas sanitárias e o impedimento a aglomerações,
aquilo foi motivo suficiente para nos animarmos em meio a uma quarentena cheia de incertezas e também de infinitas possibilidades para estimular o pensamento artístico.
Desde a publicação dos temas que fariam parte dessa experiência, a desigualdade econômica e o ambientalismo se consolidaram como aspectos que uniam os interesses propositivos e narrativos do nosso grande grupo, cada um em sua medida e à sua maneira. Valorizar a proteção da natureza e contar as histórias de seus guardiões foi uma das fogueiras que nos reuniu para contarmos histórias, fazermos perguntas e imaginar futuros.
A mineração, sem dúvida, é uma cicatriz que há séculos faz sangrar essa terra, ano após ano, em um regime exploratório que esgota montanhas, florestas e rios, aterroriza cidades e interfere no modo de vida de tantas pessoas. E a impunidade ainda torna nossa realidade um tanto mais cruel. Essa exploração estaria no centro das nossas críticas. Brumadinho e Bento Rodrigues nunca podem ser esquecidos.
Outros crimes ambientais que sucessivamente ocorreram nos últimos meses também engrossaram nosso coro de alertas: queimadas criminosas de norte a sul, toneladas de óleo no litoral do Nordeste, invasão de terras indígenas pelo garimpo ilegal, enchentes e desabamentos nas cidades. A isso se soma uma autoridade estatal que se arma e declara uma guerra explícita a modos de vida alternativos ao capitalismo hegemônico, conforme vamos abordar mais à frente.
Defender o meio ambiente é defender as constelações de modos de vida e as histórias que compõem nossa trajetória: os povos originários do Brasil, a população negra, a população pobre, as comunidades tradicionais — todos e todas que vivem à margem de “uma humanidade”. Respeitar essas histórias é fundamental na mensagem que buscamos aprender e transmitir.
No início de maio, voltamos a nos encontrar pela plataforma Zoom. Santiago, em Chicago, e nós, em Belo Horizonte. Mais adiante, nos reunimos com o painelista João Souza, criador da ONG Favela e palestrante convidado a comentar a exposição resultante da residência, visando dar sequência às atividades em grupo. Aquele foi um dos pontos mais necessários deste processo: uma oportunidade para dialogar com alguém que nos estimulou a afiar mais ainda a dimensão crítica dos projetos e nos ajudou a olhar diretamente nos olhos das desigualdades que formam as estruturas econômicas e políticas do Brasil.
Por fim, Santiago X decidiu que a exposição virtual do AAI se chamaria “PORTAL”.
DESAPRENDENDO
“Recursos naturais para quê? Desenvolvimento sustentável para quem?”, questiona Ailton Krenak, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo” (Companhia das Letras, 2019).
Economizar o quê, se a terra nos dá tudo? Como pode haver falta, se a floresta é o símbolo da abundância e da diversidade? Para os povos indígenas do Brasil, o território dos ancestrais é sagrado. A natureza é a maior riqueza, e não pode ser violada para o acúmulo dos violentos.
“HABITAR” é baseado em uma leitura poética dos livros do escritor, ativista, líder indígena e um dos fundadores da União das Nações Indígenas (UNI), Ailton Krenak, e também do poema “Triste Horizonte” (1976), de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). A obra foi feita com ferramentas de arquitetura, modelação digital, músicas, paisagens sonoras, poesia, literatura, fotografia, vídeos em 360º e outras tecnologias de realidade virtual.
Em uma interpretação livre, as palavras de Ailton ecoam nesta obra, nos permitindo imaginar realidades, misturar cosmos e materializar os sonhos desses artistas no mundo virtual. O autor surgiu como uma referência comum a todos os participantes do programa de residência do AAI, tanto em função da potência múltipla e revolucionária de suas ideias em direção à descolonização do olhar quanto também pela combatividade própria às suas palavras.
Nossa inquietação passa, então, a ser desconstruída na mesma medida em que nos aproximamos da arte a partir dos conselhos de Santiago e de Krenak. Santiago nos apontou dois pontos fundamentais para pensar os nossos mundos: “abstrair” e “curar”. Foram esses termos que nos conduziram e nos permitiram ter trocas tão honestas sobre as expectativas em torno do trabalho.
A floresta é um presente de nossos ancestrais, que a plantaram como um jardim. Não se trata, portanto, de um fenômeno cósmico aleatório, dependente de algo como o alinhamento dos astros e da expansão da matéria, mas, sim, da ação histórica de grupos humanos em sintonia com as entidades que vivem ali. Essas e outras sabedorias indígenas expandiram nossa imaginação para esse trabalho.
Trabalhar com uma plataforma digital de arquitetura de cenários e descrição de cenas, tendo ainda a possibilidade de conduzir experiências de outras naturezas, nos encheu de um sentimento inerente à fruição artística: inventar. E inventamos tudo: primeiro, o papel; depois, as fichas, as fotos, as colagens e as lâminas.
Um continente assolado por problemas ambientais, uma cidade vazia, mas ainda barulhenta. Um mundo em reflorestamento e uma comunidade em festa. Tudo perfeitamente transfigurado para a atmosfera virtual, para a internet.
RECRIAÇÃO VIRTUAL
Tudo só aconteceu a partir da complementação de habilidades e reflexões de três jovens artistas mineiros que pegaram emprestadas as palavras e ideias de outros, entre pensadores clássicos e contemporâneos.
Ao imaginarmos a experiência, considerando a obra em um universo de realidade virtual como o hubs.mozilla (que na época pouco conhecíamos), acreditamos que tudo seria possível. Imaginamos mundos que teriam vídeos como teto, filmagens 360º como satélites, poesias ecoariam no espaço, e a natureza continuaria a proporcionar a vida nos ambientes. Uma experiência biológica e espiritual de reflorestamento. E foi nisso em que “HABITAR” se transformou.
Essa seria a nossa contemplação para um mundo que busca cura. Essa foi a gênese imaginada por três artistas de Belo Horizonte: um mundo que interliga diferentes passados, presentes e futuros.
KRENAK SIGNIFICA “CABEÇA DA TERRA”
Mestre Ailton é um líder político e revolucionário, que em diferentes momentos de sua vida tem participado ativamente da consolidação dos direitos políticos e subjetivos das nações indígenas no Brasil. Em seus livros mais recentes, ele tem conversado sobre a sua terra, próxima ao Rio Doce (“Watu”) e sobre sonhos.
Ao lado de “sua geração”, é um dos fundadores da UNI, em 1979. Criada a partir da união de vários ativistas, a organização foi responsável pela unificação das lutas de povos indígenas que combatem a colonização desde 1500. Ele também participou da Aliança dos Povos da Floresta, em 1987, ao lado de Chico Mendes, ativista, seringueiro e protetor da Floresta Amazônica. Tanto Mendes como Krenak são brasileiros que inspiram a atuação de outros ativistas mundo afora.
A estação extrativista idealizada nos anos que antecederam os debates sobre os direitos e garantias dos povos das florestas seria uma solução contra o capital latifundiário que destruiu e destrói a Amazônia. Centenas de famílias de seringueiros abriram mão de hectares, de “glebas” de terras do bioma amazônico para poder cuidar da floresta tropical, juntando-se à luta dos povos indígenas pela proteção de seus territórios sagrados.
Para o mundo dos CPFs e CNPJs, o que estava em jogo era a autonomia da lei constitucional sobre a terra. Afinal, se determinado direito está na Constituição, ele precisa ser garantido. Mas não há palavra em português ou Lei Federal que traduza a relação de um indivíduo com o seu local de nascimento, com o significado que tem para um indígena ou para um seringueiro como Chico Mendes.
A autoproteção das florestas pelas comunidades que ali resistem, criando cenários onde os humanos respeitam todos os outros seres, vivendo em equilíbrio, é também uma experiência que tentamos interpretar nesse trabalho.
Chico Mendes foi assassinado no quintal de sua casa justamente em um ano no qual se debatia as novas leis constitucionais da “redemocratização”. O legado de sua luta vive no cotidiano das comunidades extrativistas e entre seus companheiros.
O que aconteceu, na prática, é que o Estado brasileiro se comprometeu a dar total proteção individual e coletiva para os territórios indígenas, bem como prometeria as demarcações logo a seguir. Prometeu, ainda, às mesmas nações, coisas que nenhuma outra nação ocidentalizada pode garantir à outra: a paz. Coisa dos brancos. Os povos indígenas foram considerados brasileiros e teriam seus direitos e garantias resguardados pela lei – pela primeira vez desde a invasão de seus territórios.
Como de costume, essas conquistas e marcos continuam em alerta, resistindo contra o poder destrutivo do capital. Mais do que nunca, o Estado declara uma guerra contra a natureza. A diferença é que hoje, na cabeça do (anti) Ministro do Meio Ambiente, essa é a batalha final. “Uma terra onde não se pode vender nada”: imaginem como isso é uma tragédia para um ministro branco, que recebeu a tarefa – do próprio Presidente da República – de destruir o que resta do meio ambiente.
Esses modos de vida, proposições de universos e alianças, são experiências políticas de resistência em nosso território que também nos ajudaram a imaginar as reflexões propostas em “HABITAR”. Segundo o fotógrafo e etnógrafo Edgar Kanaykó, da nação Xacriabá, seria preciso “indigenizar as telas”, “indigenizar os processos de produção de conhecimento”. Em sua visão, esse seria um processo que vem de dentro para fora, a partir de subjetividades cada vez mais potentes, formando um coletivo mais poderoso. À medida em que respeitamos as complexidades dessas constelações de subjetividades, compartilhar respeito e cultivar afetos fica mais fácil.
INVASÃO
As questões raciais não resolvidas por Brasil e EUA são as razões das nossas mazelas, deficiências e desigualdades. Há séculos, a proclamação de uma branquitude é um câncer para o ser humano. A afirmação de uma fictícia qualidade superior baseada na cor de pele é uma declaração de guerra aos não brancos. A proclamação de uma superioridade que dizima universos inteiros, a partir da imposição cruel de um único modo de vida baseado no acúmulo, na competição e na padronização da existência.
Descolonizar é preciso em todas as fronteiras: nos sistemas de saúde, de educação, de segurança e também nas artes. Somente assim seria possível conceber a preservação da diversidade como o real sentido de nossas existências, individuais e coletivas.
Falamos de um inimigo que não tem forma, mas exerce o poder de matar, invadir e destruir. O colonialismo pode ser apresentado de várias maneiras, mas talvez a melhor forma de dizê-lo aqui seja apontando ao racismo estrutural e às distrações que esse sistema cria com a intenção de nos alienar da terra, nos dissociar enquanto organismos integrados a este planeta, para nos separar dessa possibilidade de existência conjunta: de um lado, os humanos, de outro, a natureza. Mas “tudo é natureza”.
No Brasil, mata-se com uma impunidade ímpar. E mata-se com impunidade ímpar, sobretudo, a população não branca deste “pedação” de terra há mais de 500 anos intitulado América. Nesse sentido, outra reflexão que extraímos de Krenak é a ideia de que, se alguns são tratados como cidadãos de segunda classe, não formamos, de fato, uma humanidade. Negros, indígenas, ciganos, pobres e caiçaras não usufruem das mesmas “garantias” que uma pessoa branca – isso é fato.
Comunidades que nos oferecem práticas de vida e concepção de mundos diferentes do sistema hegemônico sempre estiveram na mira da colonização. Séculos depois, continuar aprendendo as formas de resistência dessas comunidades tradicionais deveria ser um gesto político de respeito e reverência. Principalmente em um país onde todas as relações materiais são produto da escravização. O “nosso mundo” foi erguido em cima de cemitérios indígenas e construído com o suor e o sangue dos povos africanos, raptados de seus territórios ancestrais.
A experiência que nosso grupo criou corresponde a um universo disposto em uma plataforma de realidade virtual, no qual cada participante poderá visitar quatro planetas diferentes e escolher, ao final, aquele que gostaria de habitar. Um convite para repensar o passado, refletir sobre o presente e imaginar o futuro. Kyvia e Roberta são arquitetas brilhantes. Elas criaram as cidades velhas de um mundo real e as nossas invenções.
Neste ponto, havíamos firmado uma ideia: a grande missão humana deveria ser preservar os saberes que nos conectam com a vida neste planeta. Mas como fazê-lo se não somos uma humanidade? Se todas as desigualdades apontam para uma humanidade desigual? Não pode haver pacificação se alguns são tratados como alvos.
BH E A SERRA
O poema “Triste Horizonte”, de Carlos Drummond de Andrade, é basilar em outra narrativa que se avista em um passado-futuro-presente. Durante o período da pandemia do coronavírus, é impossível não abordar tudo o que a arte nos oferece em contextos de distanciamento, lockdown, isolamento, quarentena e o que for.
Os versos do poeta mineiro foram escritos em 1976, na cidade do Rio de Janeiro, onde ele viveu até a sua morte, em 1987. Segundo um relato do artista, o poema foi inspirado em uma notícia sobre forças de segurança que barravam as escaladas e as caminhadas das pessoas na Serra do Curral. A triste despedida de Belo Horizonte nos comove a partir do olhar melancólico para a destruição da mesma serra pela MBR, mineradora que explorava a montanha naquela época. Trata-se de um processo que esgota as mesmas montanhas há décadas e que, assim, destróem também uma parte viva do povo mineiro. De tempos em tempos, afinal, as crises do preço do minério perturbam a plenitude das nossas serras.
Há séculos a mineração deixa marcas cruéis no país, e nos últimos cinco anos, dois crimes ambientais em Minas Gerais, envolvendo uma das maiores empresas do mundo, revelam uma face ainda mais cruel das sucessivas violações de direitos nesse tipo de crime. O crime ambiental.
O olhar para uma Belo Horizonte ainda provinciana, mas “palco das artes novas”, é outro ponto interessante do mesmo poema. Esse ponto nos liga ao atual momento de profusão cultural da cidade, assim como a uma geração que busca a real infusão de diversidade no caldeirão cultural do ambiente urbano. Excertos do escritor Paulo Eduardo Correa, figura chave do hip hop mineiro, e uma música do rapper Djonga contribuem, por fim, para preencher criticamente a obra, nos ajudando a propor diálogos com diferentes realidades sociais.
Belo Horizonte é uma cidade brasileira com muitos problemas sociais e ambientais. Uma cidade que surge durante o afloramento de contradições inerentes à formação do nosso país. Belo Horizonte é uma promessa, como todas as outras capitais. É um mistério. “Provinciana”, “um ovo”, “só tem morro”: Belo Horizonte, essa querida, cidade de que só os próprios nativos podem reclamar.
Dentre seus problemas sociais e ambientais, procuramos abordar principalmente dois: 1) a destruição da natureza e da paisagem deste lugar pelas mineradoras, associada a interesses do capital que devasta as nossas serras e rios, por todo o estado; e 2) a desigualdade social e racial que, apesar de gritante, é totalmente invisível nas ruas dos centros urbanos, onde temos a maior concentração das disparidades econômicas e o Estado perpetua um contínuo genocídio contra a população preta e pobre.
Desde o início, a proposta da residência nos convidava a sair de nossas próprias zonas de conforto, refletindo sobre as diferentes realidades que nos atravessam cotidianamente. Por um tempo, eu, que pude ficar em casa durante a quarentena, pensei: “tudo deve estar diferente lá fora”. Mas não: nada mudou – e nada está normal. Não há um normal, e não pode existir um normal em uma realidade na qual as relações da vida estão baseadas principalmente em experiências de acumulação, consumo, segregação e continuadas violências.
Essa inquietação levou nosso grupo às ruas de Belo Horizonte em plena pandemia. Os devidos cuidados para evitar a contaminação e a transmissão do vírus foram tomados durante todas as nossas derivas pelas ruas – não vazias – do hipercentro da capital mineira.
A cidade estava funcionando como se não houvesse medidas de restrição e distanciamento. Para aprofundar essa direção, é necessário revisar todos séculos de história do Brasil, mas o ponto a que retornaríamos é o mesmo: privilégios de uns e falta de acesso a condições básicas de muitos. Em meio a este cenário, ainda florescem retóricas sobre meritocracia. Há, definitivamente, para além de tantas outras, uma crise interpretativa neste país.
Quando recebemos os kits de trabalho, fomos gravar as ruas para criar o nosso mundo atual. Trazer as imagens do nosso território, da nossa cidade, dessa terra em queda, para o nosso mundo virtual. Um olhar sobre o presente para possibilitar o nosso futuro.
EXPERIÊNCIA: HABITAR
Imagine transitar por um universo místico, podendo apenas assistir, correr e voar por diferentes espaços. Você não pode tocar em nada, não pode carregar nada e não pode levar nada. Pode correr, voar, andar, escutar, ver, tirar fotos e ficar parado.
A importância da experiência foi poder contar histórias em torno de um fogo frio. Ouvi essa expressão em uma conversa do fotógrafo e ativista indígena Edgar Xakriabá com Ailton Krenak, pelo Instagram. Eles falavam do momento presente, filmando a paisagem do pôr do sol de suas aldeias em uma “live” pela rede social.
Do presente que é a possibilidade de cada um, em sua aldeia, poder se reunir com os “amigos” em torno de um “fogo frio”. Uma tecnologia que nossos ancestrais inventaram para nos alimentar e para nos ajudar a comunicar melhor, compartilhar histórias e criar laços afetivos.
Fomos afetados por muitas histórias nesse período da pandemia. Penso que todos tentamos inventar universos e possibilidades de criação, por meio da arte e da tecnologia, que propusessem reflexões além da realidade. São reflexões sobre o futuro e sobre as condições de desigualdade pulsantes em nossa sociedade, as quais não podem ser normalizadas em uma pacificada “condição humana”.
“Como a representação de mundos possíveis pode ser feita pelas múltiplas subjetividades que a compõem? Como podemos integrar a responsabilidade de co-criadores dessas narrativas? Em uma condição perfeita, propomos um jogo. E se pudermos oferecer uma possibilidade determinante: escolher o planeta que você quer habitar. O que você faria?”
PORTAL é a proposta de Santiago para quatro grupos heterogêneos de artistas, que até março se concentravam em Belo Horizonte e região, e durante a pandemia precisaram se recolher em suas casas. Quem era de outra cidade, inclusive, retornou para sua origem. Dentro de suas limitações e possibilidades, nasceram quatro dentre as obras de arte mais bonitas que já vi. Retomada, Aguape e Zona de Segurança são uma contemplação especial.
De todas as formas, esse trabalho nos fez construir portais entre nossos mundos, nossas casas e nossas subjetividades, em pleno período de isolamento social. Constitui-se um chamado para refletir sobre essa existência coletiva em meio a todas as incertezas e violências perpetuadas, acentuadas ainda pelo luto das mortes. Encontramos no luto coletivo uma forma de nos expressarmos.
O imaginário coletivo das tragédias sociais e ambientais faz parte da nossa história e nos permite sermos corajosos e inventivos. Todos os integrantes dessa residência fizeram de seus trabalhos uma mensagem sobre a dignidade que queremos ver para todos os “outros” – e não só para “nós”.
Todos os projetos dispuseram de tecnologias de ponta para a criação das obras. Isso, por si só, já nos oferece uma experiência “nova”. Mas a exibição “PORTAL” levanta ainda um saber primordial: a indissociação do indivíduo e da natureza como caminhos disruptivos para se pensar a vida.
Parar e olhar o passado, aprender tudo de novo com quem sempre nos ensinou. Como vamos criar o futuro? Faremos isso juntos?
João Henrique Motta é jornalista e fotógrafo da América Latina. Faz registros do cotidiano com que se depara e das múltiplas expressões artísticas que o cercam. Narra histórias e manifesta-se politicamente por meio de imagens e crônicas, ora calmas, ora intensas. Trabalha com comunicação para empresas de economia criativa e cultura de sua cidade natal, Belo Horizonte, onde também está baseado.