COLA: canoeiro se presenteia com remos

COLA: canoeiro se presenteia com remos




Durante quatro dias de oficina, o artista Davi de Jesus do Nascimento e seu pai, Davi Nascimento, se juntaram ao público para a construção coletiva de um barco navegável a partir de um saber tradicional acumulado em cinco décadas de prática. No primeiro dia, foi feita uma introdução para conhecimento das ferramentas e materiais que seriam utilizados, a preparação da proa e também o corte das tábuas laterais. No dia seguinte, iniciou-se a montagem da armação que daria forma ao barco. No terceiro encontro, foram cortadas as tábuas do fundo para a montagem da parte inferior do barco. No quarto e último dia, o fundo do barco foi finalizado, foram feitos os acabamentos, os bancos e, por fim, foi realizado o corte e a costura do tecido da vela. 



O texto que segue apresenta uma conversa realizada em meio online no dia 26/10/2022 entre  André Siqueira (Micrópolis), Caio Esgario, Davi de Jesus Nascimento e Davi de Jesus Nascimento Júnior. O encontro foi gravado e depois a conversa foi transcrita e editada.

André: Para começar, eu gostaria que vocês se apresentassem e contassem como surgiu a ideia da oficina. 

Davi de Jesus Nascimento Júnior: Eu sou Davi de Jesus do Nascimento, tenho o mesmo nome do meu pai, só que com um Júnior no final. A primeira oficina que fizemos juntos foi a oficina de rede de pesca, no contexto do Programa Bolsa Pampulha. Foi a primeira oficina do meu pai e deu super certo, ele gostou. Ele mesmo comentou “ah, poxa, ia ser muito bom também dar uma oficina de barco, né?”. Depois disso, essa ideia ficou de molho um tempo. A gente ia fazer em 2020 com o JA.CA mesmo, mas veio a pandemia e foi tudo cancelado. 

Como eu disse no primeiro dia de oficina, eu sempre fiquei  muito impressionado em ver  o processo de feitura do barco. E isso me dava vontade de que mais pessoas tivessem a experiência de ver e também ajudar a construir um. Além de ser uma forma de continuar passando essa sabedoria, essa tecnologia, essa coisa que meu pai tem, que é uma coisa que ele já faz há muito, muito, tempo. E é uma forma dele também se ver em outros lugares, de ter relações com outras pessoas. Além disso, eu também tinha curiosidade de saber como isso iria se desdobrar, como sair para construir um barco seria pra ele. Isso ele pode dizer melhor do que eu.

Davi de Jesus Nascimento: Então, eu sou o Davi de Jesus do Nascimento, pai do Davi. Eu  gostei de participar daquela oficina de rede lá na Pampulha. E a partir dessa experiência eu dei a ideia da gente construir um barco para a galera ver como é a nossa própria ferramenta de pegar o peixe. Eu adorei participar, ficar ali. A única coisa que foi terrível foi o frio, sinceramente. Pra mim é um prazer estar participando dessa coisa junto com o Davi. Foram cinco dias longe de tudo, convivendo com outras pessoas, com pessoas de toda forma, pessoas diferentes do meu mundo. E é gratificante poder passar esse conhecimento tão simples, mas que parece tão grande para os outros.

Caio: Bom, eu sou o Caio. Eu trabalho como designer, fotógrafo e faço vídeos também. Eu venho criando algumas imagens junto com o Davi. A gente participou do Festival Seres Rios, onde foi feito o registro da feitura de um barco na oficina de marcenaria do Davi, em Pirapora. Era um registro de como a embarcação ganhava corpo ali dentro daquele ambiente familiar, que abarca todas as coisas que estão entre as relações de quem faz o barco. A relação familiar, de pai e filho, a relação com o local, o olhar mais afetivo para todos os materiais e a forma como tudo é feito. A oficina de marcenaria do Davi é bem na beira do Rio São Francisco. 

Na oficina do JA.CA eu participei registrando, em foto e vídeo, a feitura de um barco com mais gente, com outras pessoas, com outros olhares. E essas pessoas estavam muito atentas e cooperativas ali pra tudo acontecer. Foi uma experiência muito boa. 

A: Você costuma construir os barcos na sua oficina de marcenaria em Pirapora? E como é esse processo? Você está normalmente sozinho ou acompanhado de mais gente?

D: Geralmente eu estou só. Às vezes tem pessoas que se juntam. Mas na maioria das vezes, estou só. 

A: E como você aprendeu a fazer barcos?

D: A minha história já vem desde a Bahia, quando meu pai e meu avô faziam embarcações grandes que transportavam mercadoria de lá pra Januária, aqui em Minas Gerais. Desde pequeno eu via aquilo. Quando eu fiz treze anos, construíram a represa de Sobradinho, e a gente teve que sair de lá. Meu pai foi pra um lugar e eu vim para outro, onde fui criado pela minha avó. Aqui em Pirapora eu fui para uma marcenaria pela primeira vez com treze anos. Mas eu já tinha a pescaria no sangue, por ter nascido naquela ilha. A gente vivia tipo índio mesmo, de peixe, da pesca, do plantio. Então isso nunca saiu da minha alma, tanto é que até hoje eu sou apaixonado por velejar. Navegar é bom de todas as formas, com remo, com motor, mas a vela para mim é muito mais importante, porque é uma coisa que eu praticamente nasci vendo. E assim eu prossegui. Fui trabalhando na marcenaria e fui pescando também. Fui vendo pessoas fazendo barco e, a partir disso, aprendendo e fazendo. O primeiro não saiu legal, mas o segundo já melhorou um pouquinho, e dessa forma fui evoluindo e fazendo os barcos. Hoje a gente faz menos barco de madeira, tem muito barco de alumínio. A madeira está muito cara, o que dificulta ainda mais. Mas a gente faz mesmo assim. Quando eu estou fazendo um barco ou velejando, eu resgato valores tão importantes pra mim que você nem imagina. Coisa da alma mesmo.

A: Essa oficina foi chamada pelo Davi de ensinança. Ensinança de barco. E eu fiquei curioso sobre isso, queria saber o porquê desse nome.

D.Jr: Eu tenho um costume de arranjar outras palavras pras coisas que já tem um nome. Aí eu tento arranjar palavras que também caibam, mas que geralmente as pessoas não utilizam. Eu tenho uma relação com a escrita, escrevo alguns textos, e gosto de pegar tudo quanto é palavra e colocar em protagonismo essa palavra, mesmo que as pessoas não a utilizem. E muitas vezes isso se mistura com os dizeres regionais daqui da região. Eu costumo usar muito as palavras que o povo da minha família usa, e só depois que eu saio daqui que eu vejo que é uma coisa do lugar. E eu faço isso para colocar essas palavras realmente na boca de outras pessoas, ou na leitura, para que essas palavras possam estar também em outros lugares. Quando eu pensei no nome da oficina eu peguei um trecho de um texto meu, que é Canoeiro se presenteia com remos, e pensei na palavra ensinança. Eu pesquisei e ela realmente existe, mas mesmo se não existisse eu usaria. 

A: Vocês pensaram juntos nas etapas da oficina? Como foi esse planejamento? Na oficina nós seguimos as mesmas etapas que você segue em Pirapora quando constrói barcos no seu dia-a-dia? 

D: Foi o mesmo processo. Existia uma preocupação de não ter tudo aquilo que talvez eu precisasse, mas é tudo tão simples, é tão pouco que a gente usa. Mas depois que eu vi que no JA.CA tem uma marcenaria montada, eu vi que não teria problema. E a produção também já correu atrás da madeira, então fiquei mais tranquilo. Algumas etapas não foram incluídas, porque o último dia da oficina estava muito úmido, chuvoso e frio, e a madeira ficou úmida. Talvez teria dado para fazer tudo se não fosse o tempo ruim. Mas fora isso, aconteceu tudo bacana. Fluiu muito bem.

A: E em Pirapora você consegue encontrar madeira fácil? Como está a relação com a matéria-prima hoje em dia?

D: Aqui em Pirapora já foi mais fácil. Hoje tá muito difícil, porque as tábuas laterais do barco precisam ser grandes, largas. E a gente não tá conseguindo achar. Quando chega, acaba rapidinho e também é caro. Eu tenho usado compensado naval, que é uma alternativa. É uma forma mais tranquila de fazer, porque é fácil conseguir.

A: Você comentou de ter aprendido com essas pessoas diferentes do seu convívio. Você podia falar mais um pouco sobre isso, sobre como você viu as pessoas participando, o que mudou no processo de feitura do barco pelo fato de ter muita gente junto fazendo.

D: Foi muito interessante. É uma coisa diferente, porque apesar de ser a mesma coisa que eu faço sempre, na oficina eu vi que as pessoas se interessam por aquele mundo. E às vezes a gente não percebe o tanto que o que a gente faz é importante. E todos ajudaram. Uma pessoa batia um prego aqui, enquanto outra fazia outra coisa ali. Isso foi o máximo. Pra mim, foi uma experiência e um aprendizado também, porque a gente acaba aprendendo com as pessoas.

A: E como foi essa experiência para você, Davi? Você já tinha tentado fazer um barco antes? Como essa experiência foi diferente do que você já tinha vivido? 

D.Jr: Eu gosto de estar junto com meu pai. Eu sinto que a gente tem papéis diferentes. Eu tenho interesse não pelo fazer, mas por levar esse conhecimento para outros lugares. E levar o meu pai junto, conseguir construir junto uma obra. São coisas que eu penso, ou então que eu sonho, e que, com a ajuda dele, e por causa dele, eu consigo fazer. Então eu acho que é mais uma troca. Eu não me vejo como marceneiro, ou fazendo barcos. É mais sobre conseguir levar meu pai para outros lugares e fazer com que ele faça isso da forma que ele fez durante sua vida inteira. É também uma forma de trazê-lo para mais perto do meu universo, colocando-o em contato com pessoas diferentes, de outro mundo fora de Pirapora. E mesmo assim, a cada lugar que eu vou, ao mesmo tempo eu também me sinto deslocado, como se fosse novidade para mim. Sobretudo agora, que eu voltei para cá e minha vida é aqui de novo, em Pirapora. É bom ver as coisas se estenderem, porque é novo pra ele, é novo pra mim, é novo para Caio. E o mais importante: é novo para todos.

D: É interessante isso porque já houve exposições do Davi em São Paulo, que é um lugar onde eu nunca fui. Mas eu faço as coisas pra ele, a gente faz junto aqui em Pirapora. Mas lá, onde a exposição acontece, eu não estou. Mas é como se eu estivesse, eu mando um pedaço de mim pra lá. Então eu me sinto inserido nesse meio também, em qualquer lugar que tenha essa parceria que a gente faz junto.

A: Como vocês veem os possíveis desdobramentos da oficina? Pensando no interesse de cada participante que estava lá, porque acho que cada um tinha algum interesse específico. 

D: Eu acho que todo mundo estava interessado e disposto a aprender e conviver ali naquele meio de alguma forma. Durante quatro dias, as pessoas pegavam uma van de Belo Horizonte para chegar até o Jardim Canadá, que fica tão longe. Tinha um que morava ao lado, o Michael, e falou que estava procurando uma escola naval para aprender a fazer um barco pequeno pra ele colocar no espaço de água que ele tem. Foi tão importante isso pra mim, de sentir que alguma coisa foi passado pra ele, que ele aprendeu né. Ele falou “vou fazer um barquinho, não sei se vai ficar bom”, mas já é um início. Eu acho que as outras pessoas  não vão fazer um barco, mas elas presenciaram a feitura e isso vai ficar impregnado na mente delas. , Não sei se todo mundo gostou da forma como foi, mas acho que foi bacana pra todo mundo.

C: Por mais que as pessoas as vezes não vão fazer uma embarcação, ver aquilo criando corpo e sair dali com a experiência de ter concretizado todas as etapas, independente de ser um barco, é também um aprendizado importante. Seja para os estudantes de arquitetura, para estudantes de design ou simplesmente para quem está interessado em aprender um pouco sobre marcenaria.  

A: Caio, eu gostaria de saber como você vê o registro audiovisual participando desse processo. Imagino que acompanhar todas as etapas com o registro deve ter gerado reflexões interessantes também.  

C: São tantos detalhes que estão envolvidos no processo. Tanto do material, quanto da própria interação entre as pessoas, que a ideia do registro é tentar não ser somente um olhar de passo a passo, mas de pegar essas nuances que estão ali nesse momento de encontro, que é descobrir um saber novo. A própria expressão das pessoas, o olhar delas, a cooperação, tudo isso faz parte da construção dessa embarcação. E isso é muito abundante na oficina do Davi, enquanto o Davi está lá e todos estão trabalhando juntos. Você vê essa coisa cotidiana, uma coisa que era da infância de Davi, e que está acontecendo e sendo refletida em outro lugar. É interessante registrar essas nuances como parte do projeto. Não só a parte prática de como fazer um barco, mas a parte sensível também. E tem uma coisa de não interferir ou não direcionar a feitura. O registro é uma testemunha do que está acontecendo naquele momento. Se às vezes uma coisa anda mais rápido e não foi registrada, tudo bem, isso faz parte. Quando você está num processo é assim que você vivencia. Então não tem um pedido de repetição ou uma direção do que vai ser feito, para que possa ser enquadrado. O enquadramento segue junto com o Davi.

A: Agora pensando nos barcos aí de Pirapora, no Rio São Francisco. Davi comentou que hoje em dia tem muito barco de alumínio, certo? Imagino que a presença dos barcos de madeira talvez não seja tão grande, como já foi um dia. Será que vocês poderiam falar um pouco sobre isso? Como isso influencia a pesca e a navegação? 

D: A pesca continua da mesma forma, independente do barco. Hoje a maioria dos pescadores colocam um motor de 15 HP em um barco de alumínio e vão pescar. A maioria ainda pesca com barco de madeira, tem muito barco de madeira a remo. Mas a pesca continua do mesmo jeito, da mesma forma. Hoje é diferente porque depois que os pescadores adquiriram os motores, os barcos ficaram mais ágeis para deslocar de um lugar para outro…

Para finalizar, eu quero mandar um abraço pra cada pessoa daquelas que estavam ali junto ensinando e aprendendo na ensinança. O meu muito obrigado pelo carinho e pelo acolhimento.

D.Jr: Meu pai é um mestre. Muitas vezes a pessoa passa a vida inteira num lugar onde as pessoas não reconhecem isso. Zanzar com essa sabedoria, fazer com que ele veja que é importante em outros lugares, que as pessoas se impressionam, se interessam, é bom. É um estímulo. É um conhecimento que para o meu pai é tão simples, mas existe uma complexidade muito grande. São coisas que eu cresci vendo, e eu cresci também não dando tanta importância. Eu precisei sair pra ver o tanto que era importante e que só acrescentava para minha pesquisa e para as minhas investigações.


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