Natureza sem raíz

Natureza sem raíz





por Daniel Toledo

Quem vê no mapa ou então numa placa de estrada alguma indicação ao bairro Jardim Canadá talvez crie, na mente, a imagem de um grande jardim. Ao chegar na região, contudo, o mesmo viajante pode se surpreender ao, saindo de uma grande rodovia, acessar, em pleno Jardim Canadá, uma paisagem marcada por numerosos muros, terrenos abandonados, grandes galpões e poucas miradas a que se possa devidamente chamar de jardim.

Acostumado a frequentar o bairro em condições de passagem, o artista Bruno Rios encontrou nessa contradição semântica o ponto de partida para uma pesquisa voltada à noção de jardim e sobretudo aos modos de aparição desses jardins na região específica do Jardim Canadá. “Sempre que vinha ao bairro, percebia que ele tem uma lógica própria, difícil de assimilar, ou mesmo várias lógicas que convivem no mesmo espaço. Parecia haver um certo mistério em torno do bairro, uma atmosfera de ficção – mas uma ficção desnaturalizada”, sintetiza o artista, que dedicou suas primeiras semanas no JA.CA ao que chamou de “escaneamento” do bairro, percorrendo todas as suas ruas.

“Por mais que seja um bairro relativamente pequeno, ele traz uma diversidade muito grande. Muitas vezes, você anda dois quarteirões e a paisagem muda completamente, de uma região movimentada, comercial, para uma área quase rural. É um bairro que ainda está se efetivando, pouco a pouco constituindo sua personalidade justamente a partir das pessoas que chegam aqui, cada uma com seu interesse em relação à paisagem”, observa.

Recorrendo a filósofa francesa Anne Cauquelin, o artista trata, em sua pesquisa, a paisagem como uma situação social especial justamente pelo cruzamento entre o ser humano e a natureza, de modo que a mesma, nesse cruzamento, é vista de fora, tratada como um elemento externo à nossa constituição. “Esse afastamento se deu a partir da perspectiva que veio com a pintura e, mais tarde, a fotografia. A perspectiva acaba sendo um filtro inerente, de modo que a gente nem sabe como seria ver sem o advento da perspectiva”, assinala o artista.

Mais habituado a trabalhar com pintura e desenho, Rios encontrou na residência artística a possibilidade de investigar outras estratégicas e suportes de trabalho. Ao longo do processo de mapeamento do bairro, o artista produziu cerca de centenas de tomadas audiovisuais, tendo como referência artistas ligados ao cinema estrutural estadunidense dos anos 1960 e 1970. “São vídeos longos, quase fotografias filmadas, nos quais se usa a câmera estática diante de uma situação, e o que acontece é o que acontece. Muitos desses filmes trazem justamente a ocupação e a intervenção humana na paisagem, frequentemente sob a lógica da urbanização”, exemplifica.

Canteiros. Interessado em diferentes formas e escalas de ação humana sobre a natureza, Bruno Rios encontrou na ambiguidade contida na palavra “canteiro” um possível eixo para  investigação audiovisual em torno de paisagens interiores e exteriores do bairro. “Por um lado, o canteiro pode ser um lugar de cultivo, afetivo, ligado ao gesto da jardinagem doméstica afetiva, que transforma e cria, dentro do seu quintal ou da sua janela, numa escala menor. Ao mesmo tempo, o bairro está cercado de canteiros de obras, mineração, especulação imobiliária e grandes eventos, atividades que se colocam como gestos mais agressivos sobre a natureza, se fazem presentes na esfera pública, dentro de uma ordem mais megalomaníaca e capitalista”, compara o artista, destacando o desejo de investigar questões também presentes em outras regiões que não o bairro, especificamente.

Durante a montagem da composição de imagens que constitui o vídeo, no entanto, Rios propôs uma articulação narrativa, ainda que bastante livre, entre os planos fotográficos que lhe serviram como referência inicial. “Até pelo desgaste da imagem, hoje, eu não queria repetir. Minha intenção era ficcionalizar o material e trazer alguma curva narrativa a partir das filmagens. O resultado reflete um pouco da minha vivência cotidiana aqui na residência, lugar onde estou cercado de natureza por todos os lados. Busquei criar, então, uma narrativa absurda que deixasse a natureza presente o tempo todo, passando pelo canteiro de obras, o corte de grama e a queima da madeira”, exemplifica, sobre um vídeo que ainda nos traz curiosas tomadas de floriculturas, terrenos baldios e plantas que se agitam atrás do vidro de uma janela.

Também há espaço, em sua composição audiovisual, para os canteiros internos e afetivos do bairro, em versões que em muito ampliam o senso comum sobre o que poderia ser um jardim. “O jardim aparece, nesses casos, como a possibilidade de trazer a natureza para dentro de casa. Por outro lado, há sempre, nesse gesto de construção, uma dimensão de artificialidade, um certo deslocamento. O que se tem, muitas vezes, são elementos que nos levam a uma ideia de cenografia, como papel de parede que imita madeira, cerâmica que imita chão ou mesmo a grama sintética”.

Plano a plano, as imagens instituem diferentes temporalidades a cada mudança de cena, dando a ver também os distintos tempos com que a ação humana se inscreve sobre a natureza e partir de seus derivados. “Entendo o filme como um experimento narrativo, mas também uma certa profanação da narrativa e da própria linguagem”, observa o artista, sobre uma montagem que inclui imagens corriqueiras e outras bastante insólitas, tais quais a de uma garçonete que aguarda seus clientes encostada em uma parede sobre a qual se vê pintada uma paisagem que inclui um pequeno lago, dois camelos e um coqueiro.

Atrás dos muros. As expedições do artista pela ruas do Jardim Canadá também renderam ainda o desenvolvimento de um pequeno protótipo arquitetônico que, em sua visão, sintetizaria um elemento tão representativo quanto curioso dentro da tipologia do bairro e da região. “Trata-se de uma estrutura vertical, criada em escala individual, que inclui um pequeno muro revestido de chapisco e algum tipo de planta atrás desse muro, podendo ultrapassá-lo ou não. Cada estrutura traz em si essa característica cenográfica que está presente no bairro, de modo a replicar e exacerbar esse aspecto, deslocando-o para um referencial escultórico”, descreve Rios.

Em sua visão, assim como estabelecer relações com os numerosos muros que escondem boa parte dos jardins do bairro, o módulo escultórico também remeteria a outras situações experimentadas na região. “Ao longo do processo, comecei a observar que os elementos de construção e intervenção humana quase sempre geram, sobre a natureza, algum tipo de invisibilidade”, destaca o artista, citando como exemplos as grades e tapumes que costumam cercar praças durante eventos temporários, ou ainda os outdoors que, ao longo da rodovia, geram sucessivos recortes e áreas de invisibilidade sobre a paisagem inicialmente natural.

No desenvolvimento deste trabalho, Rios conta ter buscado um posicionamento minimalista, trazendo a escultura como um corte estático e definido de um muro. Incluídas no mesmo conjunto e posicionadas atrás do pequeno muro, as plantas são percebidas pelo artista como elemento que contribui para problematizar a escultura e o imaginário de fixidez ao qual ainda costuma ser associada. “A partir dessa combinação, é possível, por exemplo, acompanhar o crescimento das plantas e podá-las na mesma forma do muro, em certo sentido se apropriando de uma relação calculista com o meio ambiente. Por outro lado, o corte, na natureza, muitas vezes faz com que uma planta cresça ainda mais, nem sempre tendo como resultado a simples subtração”, pondera.

Além da possibilidade de levar o módulo a espaços expositivos como uma espécie de “amostra” da paisagem do bairro, o artista propõe instalá-lo, ainda que temporariamente, em diferentes situações dentro da própria região que o inspirou. “Seja na frente de outro muro ou dentro de um terreno baldio, entendo essa escultura como um instrumento que problematiza a dominação e o enquadramento da natureza pela ação humana, assim como chama atenção à dimensão público-privada dos jardins domésticos”.

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