Ciclo de Residência – 2019 – Memórias futuras de Pindorama
por Daniel Toledo
Podemos entender os rituais como conjuntos de gestos, palavras e formalidades, geralmente imbuídos de valor simbólico e associados a alguma das múltiplas tradições humanas. Ao longo da vida de qualquer pessoa, nascida e crescida onde quer que seja, são certamente muitos os rituais vivenciados e igualmente muitos os sentidos a que esses rituais se destinam. Sobretudo no contexto da globalizada tradição moderna, cujas ambíguas camadas continuamente se derramam sobre o território brasileiro, além da experiência que se inscreve na memória e nos corpos, é comum que alguns rituais sejam eternizados a partir de imagens técnicas, como é o caso da fotografia. E enquanto alguns se constituem como signos de algo que se foi, outros servem como anúncio do que ainda está por vir.
Transitando entre aquilo que fomos, o que somos e o que podemos ser, os trabalhos da artista Laryssa Machada buscam acentuar a dimensão ritualística da imagem técnica. Frequentemente realizada em colaboração com outras pessoas, sua pesquisa artística propõe a ampliação do que comumente entendemos como ritual. Em diálogo com a sabedoria dos mais velhos e a coragem das crianças, com o poder de objetos tecnológicos e de matérias naturais, a artista reúne em suas imagens elementos dos diferentes mundos e tradições que constituem o povo brasileiro, resultando em composições que lembram esquecidos passados e possíveis futuros para a terra onde vivemos – a qual poderíamos, como ela, chamar de “Pindorama”.
Em busca de vestígios e miragens de Pindorama, Laryssa Machada encontrou no bairro Jardim Canadá um conjunto de paisagens esvaziadas e ares contaminados pela mineração ao redor. Pouco a pouco, surgiram os primeiros encontros com moradores da região, dando origem a ritos compartilhados de memória, resistência e transformação. Apostando na possibilidade de reorientar rotas e desejos civilizatórios, assim como na valorização de saberes ancestrais, tradicionais e populares, a artista enxerga seus colaboradores e colaboradoras como possíveis entidades urbanas, cujos poderes se manifestam a partir de processos afetivos de troca, paramentação e produção de imagens. Na entrevista a seguir, Laryssa compartilha aspectos importantes da própria pesquisa, dentro da qual valores como jogo, brincadeira e liberdade surgem como inventivos caminhos de criação.
Pensei em começar essa conversa falando um pouco sobre a origem da proposta que você apresentou à residência. Quais foram as principais motivações para a elaboração da proposta?
Existem algumas coisas que eu já venho trabalhando há algum tempo: essa ideia geral sobre o colonialismo no Brasil, nessa terra Brasil, que tenho chamado de Pindorama – a terra dos sonhos dos Tupis, antes de chegarem os portugueses. Eu acho que é interessante, importante e urgente que a gente consiga realmente pensar essa terra a partir de uma outra perspectiva – e aí o trabalho se conecta com a proposta da residência: “Como estar nessa terra a partir de uma perspectiva de não-exploração?”.
A proposta da residência também se conecta com tudo o que eu venho fazendo nesses últimos anos: pensar que, na verdade, essas perspectivas possíveis já existem. Não é como se você estivesse inventando uma coisa completamente nova: os povos que existiam aqui antes de toda essa violência do colonialismo (e do capitalismo agregado ao colonialismo) já tinham um modo de vida baseado em união, em coletividade, em você não ser mais do que a natureza, não ser uma coisa descolada. Porque a separação entre o ser humano e o seu entorno, especialmente o entorno que não foi criado pela humanidade, é uma coisa muito específica da ideologia ocidental.
Eu nunca tinha estado em Minas Gerais, nunca tinha visto tão de perto uma mina. Nunca tinha pensado no que são esses corpos que estão muito próximos desse ouro, e como isso construiu toda a historicidade desse território. E o que tenho pensado em propor é justamente como a gente vai fazer essa dobra no tempo-espaço. Porque apesar de estarmos revisitando a história e escrevendo por nós mesmos as nossas narrativas, a realidade desses 519 anos já está dada. E como a gente vai dobrar isso? Como a gente vai construir esse novo momento, que é o momento presente, mas que também é o do porvir?
Eu sinto que isso tem acontecido enquanto um movimento: tem muita gente, muitos artistas, trabalhando sobre essa cura. Muitas pessoas estão chegando a esse lugar, se dando conta e querendo sair da perspectiva só do sofrimento. Porque quando você se depara pela primeira vez com essa realidade, com essa construção de nação, você primeiro sente por tudo. Passa pelo seu corpo, pela sua história, passa pelas que vieram antes. E aí, para seguir caminhando, você precisa repensar como isso vai acontecer. A minha proposta tem a ver com isso: pensar como a gente pode construir esses corpos, essas paramentações para proteção e para transformação. A partir de coisas que a gente encontra na rua, de sacos que carregam alimento, mas também energizar colocando folhas, e coisas de brincadeira, para daí criar esse ser que quebra uma linearidade que já está posta.
E mais uma coisa: esse lance de pensar a fotografia ritual. Ela não é uma performance, não é estar interpretando uma situação, mas, sim, estar ritualizando: estar fazendo um movimento que vá transformar alguma coisa. É o movimento do seu corpo, que você está empregando naquele momento, no contato com aquela terra, com aquelas pessoas, em contatos afetivos. Não é pensar como uma coisa isolada, como estar fazendo uma obra, um produto, mas sim estar vivendo e criando a partir do caminhar.
O projeto de pensar essa cura começa justamente num momento em que eu observava muito sofrimento de olhar para essa história e queria voltar a ter energia, voltar a me encantar. Eu acho que a vida, as criações, a gente estar observando a historicidade e dobrando ela, são caminhos para construir uma narrativa que nos permita voltar a se encantar. Voltar a um constante estado de observação, paciência, compreensão e, realmente, encantamento – que eu vejo como essa magia acontecendo: a magia do encontro, da construção de uma nova narrativa. A magia de estar viva.
Considerando o momento de passar do projeto para a prática, que aspectos do lugar e da própria experiência chamaram a sua atenção?
Uma coisa que afeta muito o meu trabalho é a interação com as pessoas do entorno: estar observando cenas, me afetando por elas e respondendo a isso. É estar conversando e dialogando com essas pessoas, que considero entidades urbanas, fazendo seus próprios rituais. Seja um corpo trabalhando na rua ou pessoas num bar, fazendo aquele ritual de encontro, se alimentando, ou mesmo em lugares mais direcionados, em rituais espirituais ou religiosos, como um banho ou algo assim.
Ao chegar, eu senti que o Jardim Canadá é um espaço bem vazio, em que você acaba mergulhando bastante em si mesmo. Não é um bairro super populoso, tem uma história recente, e isso me surpreendeu um pouco. Eu imaginava um pouco mais de diálogo com as pessoas, e isso acabou acontecendo – mas com pessoas que eu encontrava na rua e acabava encontrando de no, não é aquela coisa de você estar no meio de uma circulação. E aconteceu também durante as buscas, os momentos de ir buscar materiais para fazer essas montações, essas paramentações.
A ideia inicial era justamente dialogar com elementos que já existem, elementos de poder de populações indígenas e afro-diaspóricas. Coisas que vêm dessa busca de memória, uma busca própria, mas que deveria se expandir entre a população brasileira – no sentido de uma construção de identidade que passa por muitos processos de embranquecimento, de apagamentos, de instrumentos de poder, de força, de filosofias de vida. E aí, justamente, pensar essa perspectiva de transformar as coisas, inventar outra realidade que não seja essa cartesiana, violenta e hierárquica.
O trabalho acabou indo para um mergulho de pesquisa e de conversa com outras coisas que não fossem seres humanos: estar em silêncio, observar as plantas e aí começar a cortar a cana, olhar a bananeira, daí olhar para um pé de chá que meu pai fazia sempre pra mim, me conectar com memórias dele, com outras memórias e percorrer esses fluxos. Mas acredito que todas as coisas são processos. Não acredito que as coisas se fechem. É sempre dar continuidade as coisas: buscar um estado de energia vital, de encantamento – e eu não estava pensando em nenhum momento num produto.
Ao mesmo tempo em que você fala da importância de cuidar do seu estado de abertura para o encantamento, em alguns de seus trabalhos você parece ativar esse estado em outras pessoas. Como você percebe esse trânsito entre trabalhar com o seu corpo e com outros corpos? Como provocar essas pessoas a contribuírem, a imaginarem, a se transformarem e se redescobrirem?
Eu gosto especialmente destes momentos em que se troca com outras pessoas, em que outros corpos podem acessar essa experiência. E não tem muito uma guiança minha: é a gente conversar, procurar coisas que sejam importantes para aquela pessoa, coisas que façam sentido a partir das memórias dela, a partir da vivência dela, daquele corpo, a partir de onde ela está situada. E no caso das crianças, de brincar mesmo, pegar um monte de roupas e pedir que elas escolham o que querem, pegar os instrumentos e pedir para elas tocarem… Porque eu acho que as crianças, na verdade, já estão prontas no lance da cura: elas já estão em outro lugar e ensinam para a gente.
Gosto muito desse diálogo a partir de coisas que faziam sentido para a pessoa e para mim – não só eu trazer coisas e usar o outro como modelo. O que me interessa são co-criações, e tem que haver essa expressão da pessoa também, esse corpo-expressão, esse corpo-entidade, que está ali aceso e especialmente ativo.
Sobre trazer o meu próprio corpo, isso foi uma coisa sobre a qual fiquei pensando em dado momento do processo. Eu estou representando outras pessoas? Como é estar desse outro lado? Como comunicar a partir desse corpo? Só que não considero que seja exatamente eu: acho que é uma das muitas versões. Existem muitas versões de cada pessoa, e isso é gostoso. Muitas vezes, os trabalhos envolvem justamente acessar essa outra “girada”, essa outra gira, essa outra coisa que você canaliza naquele momento. O processo tem mais a ver com estar observando o entorno e tentando construir narrativas sobre várias outras coisas expandidas, que não sejam só as minhas questões interiores.
Eu acho que isso também faz parte do ritual: algumas coisas você precisa sentir no corpo. Algumas fotos passam por esfregar pó de café na cara, açúcar na cara, ou então tomar um banho, ou então usar cimento, para sentir no corpo. Porque eu acho que tudo gira, desde o momento em que você ouve ou lê sobre alguma coisa, cria uma ideia, e, de repente, a coisa bate em você, na sua pele. Aí surge uma virada.
Em muitos trabalhos, eu não tenho uma ideia preconcebida sobre como vai se dar. O que eu tenho é uma ideia inicial, um disparador: alguma coisa de limpeza, alguma coisa de invasão, de violência, de encontro – a partir dessa temática mais macro, que é a colonialidade e a descolonialidade, e também dos corpos que vivem essas realidades. E muitas coisas vão chegando ao longo do fazer. Às vezes você constrói uma imagem e, quando ela está pronta, pensa: “Nossa, eu nem percebi conscientemente que fiz esse gesto, que a luz pegou desse jeito, que um ângulo acabou mostrando tal coisa…”. A própria experiência vai construindo e trazendo caminhos, e eu acredito muito na experiência, porque a gente fica muito tempo debruçado nas narrativas teóricas, desvalorizando as narrativas que surgem de você experienciar aquilo.
Além de corpos humanos, as imagens que você cria trazem materiais de muitas origens, tanto encontrados quanto escolhidos, às vezes muito corriqueiros, mas também muito simbólicos. Você poderia falar um pouco sobre esse processo de composição entre corpos, materiais e também paisagens?
Pra começar, tem essa mistura entre muita coisa que se encontra aqui nessa terra onde a gente vive. E eu acredito muito que as coisas sagradas não são sagradas exatamente por serem límpidas ou intocáveis. Acredito que várias coisas podem ser disparadores para você brincar e voltar a ter desejo de estar vivo. Lá atrás, esse processo começou de um cansaço de uma versão só de mim mesma, então eu pegava coisas que achava na rua, que habitualmente não seriam vestíveis, não seriam comuns, e achava que tudo podia ser reinventado. Isso pode parecer uma coisa simples e pontual, mas é também um pensamento muito expandido, que reconhece a possibilidade de constante reinvenção.
Eu acho que você se cristalizar numa numa estrutura política, numa estrutura social, numa estrutura filosófica é uma coisa muito provida de um formato de pensamento específico. E estar sempre se reinventando é fazer essas dobras: pode ser uma coisa mínima, como simplesmente estar com uma roupa diferente na rua e trocar ideia com as pessoas, que era o que eu fazia. É uma forma de causar certo divertimento nas pessoas e em você mesmo, de experimentar uma outra forma de estar no mundo e acessar as pessoas a partir de uma quebra, desorganizando as nossas caixinhas de pensamentos. A gente está ensaiando a liberdade, produzindo liberdade e inventando outras liberdades, que são múltiplas. E ter a potência de estar inventando liberdade é uma coisa incrível.
Ainda sobre os materiais, eu valorizo muito saberes das que vieram antes, especialmente as pessoas originárias dessa terra e de África, que já têm uma experiência muito longa de escutar a terra, escutar a floresta e outras camadas de realidade. Acredito que o futuro tem muito menos a ver com a modernidade e o desenvolvimento tecnológico e muito mais com as sabedorias das avós, adicionadas a como cada um faz o seu caminho.
Pra mim, é importante reconhecer a possibilidade de transformação, reconhecer o que veio antes, buscar esses símbolos e essas curas cotidianas. Mas também reconhecer as coisas que encontro pelo caminho: um saco de cimento Campeão, que diz tanto sobre o Brasil, sobre a perspectiva de um desenvolvimento excessivo e consequentemente de muitos genocídios – e aí você pode ser campeão na ideia de invadir terras. É uma questão de estar atenta e aberta para receber essas mensagens.
Pensando no seu trabalho, percebo que a maioria das imagens têm significados muito abertos, ao mesmo tempo em que você às vezes inclui depoimentos que se aproximam do documentário. Parece sempre haver um jogo entre dizer e não dizer, entre fazer sentir e ao mesmo tempo querer que algumas coisas sejam percebidas de modo mais sensível. Como você pensa o tratamento dos materiais, considerando o quanto deixar os sentidos em aberto e o quanto direcioná-los?
Muitas inspirações e acessos vêm justamente a partir do caminhar, mas muita coisa também vem a partir de uma pesquisa, de um debruçar-se sobre uma situação ou um tópico específico. Os símbolos que eu coloco no meu trabalho nunca vêm de graça: às vezes eles podem ter um tom de brincadeira, mas eu os escolho. Acho muito importante que a criação de potência aconteça por um propósito, por uma comunicação, e acho que essa comunicação precisa chegar de alguma forma. Então tenho a preocupação de me fazer entender – e que não seja somente eu me fazendo entender, mas que múltiplas vozes estejam falando.
Eu acho interessante você pensar num vôo mais livre, em que você não esteja respondendo nenhuma demanda, e às vezes algumas coisas que eu faço acabam tendo esse teor. Mas eu quero que pessoas que são importantes nessa troca de narrativas da história colonial brasileira acessem os trabalhos, e para elas acessarem é importante direcionar. Os trabalhos vêm de muitos fundamentos que tentam ser representados, ser acessados. E aí um pouco é entregue, e um pouco é mistério.
Também acho que alguns trabalhos buscam valorizar os saberes desses objetos em si, que na verdade não são objetos, são símbolos: a palha tem um fundamento, as folhas têm um fundamento, a água, uma vela… Então é importante entender também as formas de comunicação de cada uma dessas coisas, porque elas têm suas funções ritualísticas em cada situação.
Outra dimensão bastante presente no seu trabalho é o humor, assim como o jogo, a brincadeira e a liberdade – como você mencionou. Como você percebe e entende essas presenças?
Acredito que essa busca pelo humor vem junto com a coisa do encantamento. Eu gosto de rir, todo mundo gosta de rir, e, quando a gente está rindo, a gente está mudando alguma coisa. Acho importante pensar em coisas que nos façam bem e pensar em formas de falar essas coisas, formas que não sejam engessadas. Gosto muito do jogo, e justamente desse jogo que é uma ginga, porque você fala uma coisa, e as pessoas podem entender uma coisa ou outra: isso fica a caráter da conexão que se estabeleceu ou não. Dependendo da conexão que se estabelecer ali, a gente vai jogando uma capoeira.
Como eu trago pontos que são muito pesados, que atravessam as minhas irmãs, muitas pessoas próximas e mais da metade da população de Pindorama, eu fico pensando em como a gente vai dobrar isso. E aí acho que trazer humor pode acessar mais pessoas, pode acessar as pessoas de uma forma que elas não vão ficar amarradas. É óbvio que às vezes é só pesado mesmo: não tem humor, não tem nenhuma piada, não tem graça – é uma realidade. Mas recebendo todas essas violências que a gente sabe que constituem a construção do país, como a gente segue caminhando?
É importante lembrar que existe a violência, mas existe o churrasquinho com pagode, existe encontrar uma pessoa que você ama, existe tomar um chá que alguém pegou no quintal… E aí você vai fazendo esses equilíbrios, porque a gente está aqui para estar bem, e é importante trazer essa essa celebração de estar vivo. Eu estava lendo um livro, chamado “Fogo no Mato: A Ciência Encantada das Macumbas”, que fala que o contrário da vida não é a morte, mas o esquecimento. E que esse esquecimento pode passar por você esquecer de você, esquecer das que vieram antes e esquecer dos seus propósitos para estar aqui. Eu acho que a gente está trabalhando para recriar esses propósitos, individualmente e coletivamente, enquanto um sonho que se tem ou uma realidade que já existe. Uma coisa que tenho repetido bastante, especialmente estando na cidade, é “não se esqueça de se lembrar das coisas que fazem sentido”.
Acredito também que a gente pode ressignificar as coisas. Algumas vão ser pesadas, mas você pode achar uma outra forma de guardar aquela memória, e isso é um poder próprio. Por isso penso a fotografia enquanto um ritual para evocar esses momentos novamente e construí-los de uma outra forma. Acessar esses momentos de sofrimento, mas colocar humor… Eu acho que chegou um momento da minha vida que eu legalizei a ousadia e a alegria que existiam em mim, escrevi isso na minha Bíblia, coloquei como um mantra. E tem vários corpos, em vários trabalhos, em que é preciso acessar isso: você está “gastando onda”, está rindo mesmo. Porque eu não vou dar esse poder para eles.
Quando o seu corpo não está nas imagens, você frequentemente trabalha com outras mulheres, como foi o caso da Márcia, que você conheceu aqui no Jardim Canadá, e das duas crianças que você fotografou. O que sustenta esse desejo de compartilhar com outras mulheres – e meninas – os seus processos artísticos e de vida?
Eu acho que isso tem a ver com o desejo de se conectar e de ser muitas. E de reconhecer que existem muitas variações também entre esses corpos de mulheres, existem especificidades e formas como esses corpos estão habitando cada espaço social, com diferenças enormes. Mas ao mesmo tempo eu sinto que há uma conexão: a possibilidade de uma mulher ser abusada é uma que eu tenho também – tenho de uma forma diferente, mas é uma coisa que construiu um histórico brasileiro. Isso é uma coisa que eu também acabo trazendo, porque penso esses corpos como retratos da “invasão Brasil”, de um país construído a partir de mulheres indígenas pegas no laço.
Com isso eu estou me abrindo para outros campos de referências, porque já tive, durante muitos anos da minha vida, um direcionamento a uma narrativa muito específica sobre o Brasil. Então me interessa, agora, valorizar esse tempo para buscar outras coisas e construir também outras coisas. É por isso que eu acabo construindo justamente com outras mulheres que, assim como eu, não foram narradas ou foram narradas a partir do olhar masculino, branco e eurocêntrico. E também porque tem coisas que eu realmente não acesso enquanto o corpo que habito, mas surgem de diálogos que vão acontecendo com outras pessoas.
Nesse sentido, gosto muito de dar oficinas de vídeo e fotografia, porque acho que as pessoas têm que aprender a se retratar a partir do desejo delas. Se eu tive o privilégio de acessar essas técnicas, é chique chegar numa comunidade indígena e compartilhar, para que a galera faça também, assim como acontece em várias outras situações. Acho que a gente está finalmente chegando nesse momento de reconhecer que os discursos femininos são super plurais, que não precisam nascer da fragilidade da mulher branca, da força inquestionável da mulher preta ou da ingenuidade da mulher indígena. Cada uma vai construindo a sua perspectiva.
Muitas vezes, você se depara com uma realidade em que você não cabe (assim como muitas outras pessoas também não cabem), então você precisa criar uma outra coisa. E isso pode ser considerado uma ficção ou uma outra camada de estar vivendo aquela questão. Eu gosto muito de pensar na ficção enquanto invenção: ficcionar um futuro possível que pode se tornar real a partir da ficção. Porque não é uma ficção estática e estéril – ela é a ativação de alguma coisa. Então você olha para aquela imagem e, muitas vezes, recebe a força daquilo, recebe essa transferência. É como se o ebó da imagem causasse um trabalho em você.
Gosto de pensar cada imagem enquanto um trabalho, enquanto a construção de uma outra possibilidade que vai acessar o seu corpo. Não é só o momento de criar a imagem: é o que está acontecendo no processo, no durante – e esse durante pode estar presente naquele milésimo de segundo. Hoje em dia, a gente convive com uma produção excessiva de imagens, a gente está recebendo o tempo todo milhares de imagens que já não nos acessam mais, já não nos conectam. E também por isso eu penso em como construir um outro tempo de imagem, de modo que os trabalhos tenham realmente toda essa construção prévia e possam reverberar de outra forma.
Penso muito nas imagens como verdade, como prática. Não é só o fato de retratar aquilo enquanto uma representação: é você realmente estar fazendo. É realmente aquilo virar uma uma prática; é realmente colocar energia na situação, para que as coisas aconteçam. É realmente estar lavando roupa, é um banho que bate como um banho. Não é só imagem.