Ciclo de Residência – 2019
A terra como espelho
por Daniel Toledo
Em janeiro de 2019, a região da cidade de Brumadinho, em Minas Gerais, entraria para as estatísticas mundiais como alvo do maior crime ambiental da história provocado por vazamento de minério, provocando a morte de mais de 250 pessoas e a contaminação do rio Paraopeba, entre muitas outras perdas. Controlada pela Vale S.A., empresa de origem estatal privatizada em 1997, a barragem Córrego do Feijão é apenas uma das muitas estruturas semelhantes que ameaçam a vida de um estado cuja história colonial se funda justamente a partir da atividade de mineração.
Pois são as múltiplas relações estabelecidas entre a humanidade que constituímos e a terra onde vivemos que serviram como estímulo à pesquisa da artista Juliana Gontijo durante o período de residência no JA.CA. Tomadas, em seu trabalho, como terreno onde se pisa e também paisagem vista à distância, as terras do Jardim Canadá se constituiriam em matéria para a construção de um buraco e um monte, que juntos funcionariam como um mirante capaz de revelar tanto o próprio visitante quando a montanhosa – e devastada – paisagem da região.
Enquanto acontecia a produção da obra, no entanto, impôs-se o clima e a própria natureza do lugar, transformando o recém-aberto buraco em lago, e devolvendo ao mesmo buraco a terra que dali havia saído. Ao longo de uma entrevista realizada nos últimos dias da residência, a artista reflete sobre o próprio processo de trabalho, perpassando desde a gênese da proposta até os desdobramentos da experiência em seu próprio corpo.
Queria começar te ouvindo um pouco sobre as motivações e origens do projeto que você propôs à residência. Como você contextualizaria esse trabalho dentro dos seus interesses e do seu caminho artístico até agora?
Eu já vinha fazendo uma pesquisa muito ligada a duas noções. Primeiro, a territorialidade, à terra vista de cima, passando por mapas e cartografias. E também à percepção do corpo na paisagem: essa medida do próprio corpo e da percepção corporal do espaço. Algumas vezes, eu percebi que meu trabalho tentava criar um laço entre essas duas noções, o que me dava uma sensação de queda: como se você estivesse nesse lugar alto, do mapa, olhando para baixo, para a Terra, e de repente caísse. Percebi que meu trabalho estava caminhando para esse tipo de imagem, colocando essas duas percepções juntas. O que é a noção de um território? Como isso nos atravessa, corporalmente? Como a gente se coloca em sociedade? Quais são os limites e as fronteiras? Até onde meu corpo pode ir ou não?
Eu vinha desenvolvendo esse projeto aqui em Minas, ficando muito por aqui. Mas em 2018 eu passei um tempo no Acre, e essa experiência intensificou esse aspecto do meu trabalho: ir para um lugar muito distante, me deslocar como um corpo que percebe essa paisagem, mas também entender as outras camadas disso, que têm a ver com o território. Quando cheguei lá, a primeira sensação foi perceber que a minha pele estava diferente, que toda a atmosfera tinha grudado na minha pele, talvez pela umidade.
Eu senti essa mudança corporal, mas também pelas conversas com as pessoas. Eu chegava em um bar, e alguém falava comigo: “De onde você é lá do Brasil?”. Eu pensava: “Eu estou no Brasil, mas é um lugar tão longe, tão distante…”. Eu fiquei um tempo lá, viajando para alguns lugares, conhecendo pessoas, e produzindo durante um tempo, num ateliê. Desenvolvi vários trabalhos, que depois eu trouxe para Belo Horizonte e mostrei em uma exposição que se chamava “O Risco”. Esse foi o momento em que comecei a perceber que outra coisa era importante para mim: eu, imaginando estar num lugar onde não estou, a pré-viagem; eu, no lugar onde estou, durante a viagem; e eu, depois que volto.
Quando estava fazendo a exposição, percebi o quanto essas dimensões do lugar – antes, durante e depois – acabam ficando impregnadas nas imagens que eu produzo. Ao escrever o projeto para o JA.CA, tudo isso estava borbulhando na minha cabeça, e eu tinha uma questão sobre a nossa compreensão do tempo: “Como a gente poderia entender esses tempos: projeção, estada e posterior?”. Os principais eixos do projeto eram formas de acessar esses diferentes tempos, e talvez por isso eu quis criar o que chamei de “mirante”.
O projeto partiu do ponto de imaginar uma experiência com a terra que não estivesse atrelada ao passado – a, por exemplo, falar dos traumas dessa terra, da mineração, de uma terra que inevitavelmente é marcada por isso. Aqui no Jardim Canadá, conversei com muita gente que trabalha na mina, seja aqui ou em volta. A mineração movimenta esse lugar, as pessoas trabalham com isso, convivem com essas imagens etc. Ao mesmo tempo, eu não queria propor uma resposta para o futuro: a minha vontade era construir um espaço de observação, um mirante, para que eu pudesse perceber a terra sem, talvez, passar por essa dicotomia entre um passado traumático e o futuro que se propõe a ser outra coisa.
Começaram a vir várias coisas na minha cabeça: a ideia do tempo circular, de como seria possível perceber o tempo que não fosse pela forma que eu percebo hoje. Daí eu parti para uma tentativa de não ser, de alguma forma, o que eu fui e o que eu sou. Uma tentativa de me transformar em outro corpo de percepção da paisagem. Como seria possível eu ter uma noção de tempo que não fosse um embate entre passado e futuro?
A proposta inicial era o mirante como um lugar duplo que partiria de um movimento de escavação. A ideia era construir um mirante que ao mesmo tempo fosse a parte mais profunda da terra e a parte mais elevada. Então era um buraco, que eu construiria em um lugar, e um topo, que eu construiria em outro. Mas se eu vou construir um mirante, como eu vou dar acesso a isso? E dar acesso não é só ter um mapa para a pessoa chegar lá: dar acesso é colocar a pessoa nessa história, envolver nesse pensamento. A primeira ideia foi construir um áudio, que ao mesmo tempo fosse uma narração desse percurso, dessas instruções do percurso, e também entrasse numa narrativa que levasse a pessoa a estar nesse mirante, não só com o corpo, mas já dentro de uma história.
Quando comecei a pensar na ideia de escavar, a proposta era questionar esse nosso nome. “Mineiro” é aquele que escava, buscando na terra algo que pode ser como minério e ouro, mas também como acessar seus ancestrais, plantar, criar seus filhos nessa terra. Quando eu comecei a imaginar essa escavação acontecendo, logo percebi um buraco e um topo, e me veio a ideia da forma de uma ampulheta. Quando você olha para ela, existe um topo, de repente você gira, o topo se torna buraco ao mesmo tempo em que o buraco se torna topo. Esse momento em que duas coisas acontecem ao mesmo tempo era algo que me interessava.
Como se deu a busca pelo lugar onde você realizaria o trabalho?
Eu cheguei aqui, e a primeira coisa era achar o lugar onde eu ia construir o mirante. Eu comecei a andar pelo bairro, ver que tem muitos lotes vagos, para alugar, e comecei a reparar inclusive em algumas obras que me permitiam ver o interior da terra. A partir dos buracos que são feitos para a fundação das construções, fui percebendo como a terra é por baixo da superfície.
Outra coisa que me chamou atenção foi a fronteira entre o terreno da mineração e o terreno do bairro. Andando de bicicleta ou a pé, eu via sempre uma cerca e uma fileira de eucaliptos que tampa a sua visão da paisagem, como se fizesse uma cortina. Você não pode passar, porque tem uma cerca, e você não pode ver, porque tem uma camada que esconde.
No dia que essa falta de acesso à visualidade me incomodou, eu comecei a percorrer toda a linha dessa fronteira entre a mineração e o bairro pelo Street View, do Google. Fui andando, andando e comecei a marcar alguns pontos, pensando que talvez eu poderia passar pela cerca e fazer o mirante depois dos eucaliptos. De repente, eu achei um lugar que era aberto, um lugar que não tinha eucalipto e não tinha cerca. Em uma rua sem saída, um lugar por onde as pessoas não passam – e talvez por isso seja aberto. Depois de achar esse lugar no Street View, eu decidi ir lá pra ver.
Na hora que eu cheguei no lugar, era uma visão de apocalipse. Parece que há pouco tempo tinha passado um trator por lá, e aí tinha muitas coisas para fora da terra – raízes grandes de árvore, pedras todas sujas de terra etc. – e dava para perceber que essas coisas tinham sido tiradas há pouco tempo. Eu cheguei nessa terra, meio revirada, meio arrasada, com árvore caída, um riachinho seco, e nesse lugar encontrei uma dupla de pedras no meio do caminho de um trator. A princípio eu não entendi porque aquilo estava ali, eu só achei uma coisa incrível. Duas pedras, quase iguais, do mesmo tamanho, no meio de um do caminho aberto. As duas pedras lá, sozinhas.
Isso já se conectou, na minha cabeça, com a imagem do que eu queria construir: um lugar com dois pontos para você ver a paisagem. E eu comecei a ter uma relação afetiva, a ser afetada por aquela paisagem. Era um terreno da mineração, mas mesmo assim, pensando que talvez seria impossível fazer isso lá, porque quando eu começasse alguém poderia aparecer, eu quis fazer lá, correndo o risco de conseguir ou não.
De que modo a experiência de estar no JA.CA foi reconfigurando seu projeto?
Quando eu escrevi o projeto, era um mês de seca. Eu moro em Belo Horizonte e todos nós estávamos passando por um momento difícil, com dificuldade de respirar, e aí essa imagem da terra seca, da poeira, da possibilidade de um buraco, tudo isso, para mim, era muito real. Até que mudou a estação, e quando começou a residência já não era mais o período seco. E a própria paisagem me propôs que eu não ia conseguir fazer aquilo: não seria possível ter a ideia seca no tempo molhado.
Mas depois de escolher o lugar, eu comecei a fazer alguns experimentos, alguns primeiros contatos. Era um lugar muito vermelho, com terra muito vermelha, na beira da mina, tanto que a gente sobe e vê a mina, lá de cima. E como era um lugar que já tinha sido atravessado por um trator, ele revelou essa terra – muito vermelha.
Eu comecei a pensar que gostaria de fazer algo ali naquela terra com uma outra poeira que não fosse a própria terra. Comecei a pensar: se eu for colocar alguma coisa na terra, que seja um alimento. E aí, dentro disso, eu escolhi o polvilho, que é mandioca – uma raiz que você tira de dentro da terra. E o polvilho, apesar de ser um pó, tem uma capacidade de suspensão no ar: ele seria poeira e seria fumaça. Então essa imagem do polvilho foi a que eu escolhi para trabalhar na terra.
Depois disso, eu fiz algumas ações para demarcar o lugar onde eu ia começar a escavação. Tem dois vídeos: um do pó, que foi esse primeiro contato, e o do espiral, que tem a ver com o fato de que eu gostaria de construir um buraco na medida do meu corpo. Para mim, não interessa nem nunca interessou uma estrutura que fosse fora da capacidade do meu corpo. Se eu quero ver um buraco muito profundo, megalomaníaco, é só subir ali e ver a mineração – mas não era isso o que eu queria. E aí, com a medida do meu próprio corpo, comecei a fazer um espiral para construir essa marcação.
Eu ia lá todos os dias, depois das 16 horas, porque eu sabia que o pessoal da mineração não ia passar. Comecei a cavar, mexer, furar com alavanca. Mas logo eu percebi que não ia conseguir fazer isso sozinha: eu tenho um corpo de uma pessoa que não faz essas coisas, não sou uma trabalhadora braçal. Nos primeiros dias, já comecei a ficar com calo, bolha etc.
E como você resolveu esse impasse?
Um dia eu estava no Churrasquinho do Célio, um point do bairro onde a gente conheceu várias pessoas muito interessantes: é um caminhão, que para numa esquina, abre uma churrasqueira e fica fazendo churrasquinho, vendendo cerveja, e a galera passa lá depois do trabalho, ainda de uniforme. Nos primeiros dias, eu já comecei a falar: “Eu tô precisando cavar um buraco…”, e eles começaram a me perguntar como era o buraco. Eu falei sobre a profundidade, a largura, o formato de funil, e os caras, ali no churrasquinho, ficavam discutindo sobre a possibilidade de dar ou não dar certo. Eu fiquei durante um bom tempo fazendo um estudo sobre como fazer o buraco, conversando com pessoas que sabiam muito sobre a terra daquele lugar onde eu queria trabalhar.
Um dia, no meio dessas conversas todas, as pessoas falando que não ia dar certo, o Robson, que foi uma das pessoas que eu conheci, falou comigo: “Eu faço”. Eu peguei o telefone dele, ele começou a me perguntar quais ferramentas eu tinha, eu mandei pra ele algumas fotos das ferramentas do JA.CA, e ele disse “Vai dar para fazer, vamos lá”.
Não passaram muitos dias, a gente se encontrou no churrasquinho e foi para lá. Na primeira vez em que ele colocou a alavanca no chão, ele disse: “Isso vai ser moleza!”. Não era uma terra que tinha entulho – era uma terra nova e já estava mexida. Ele começou a cavar, e eu ajudava a tirar a terra, que era o que eu conseguia fazer. O processo durou uma hora e 40 minutos: foi muito rápido para fazer o buraco. Foi também um tempo em nós ficamos conversando, e uma coisa que ele falou mexeu um pouco comigo. Já mais pro final, eu comentei alguma coisa sobre o cheiro de terra, e o Robson, que é confeiteiro e padeiro, respondeu: “Dá um cheiro mesmo, muito forte, muito gostoso. Dá vontade de comer”.
Depois de feito o buraco, quais foram os passos seguintes?
A ideia era que tivesse estruturas de espelhos no fundo desse buraco e no topo desse monte. Eu queria que fossem espelhos iguais, redondos, para criar um vínculo entre os dois espaços, como se eles fossem um só. Queria construir alguma estrutura de percepção do tempo que não seja fosse linear, mas talvez algo que nos conectasse a outro tempo-espaço. A ideia do espelho era tentar trazer isso para a experiência, como se fosse um furo: quando chega na beira do buraco, você olha e vê o céu, um lugar que não tem fundo, que se abre. Um abismo.
Quando eu estava pensando sobre qual estrutura eu utilizaria para fixar o espelho no fundo do buraco, começou a chover, chover, chover. E eu ficava imaginando, dentro do JA.CA: “Como estará o buraco?”. Passados alguns dias, nós fomos todos juntos até lá, para que eu pudesse mostrar o buraco para todo mundo, mas eu não sabia como estava.
O que a gente encontrou foi uma imagem muito assustadora, bem diferente da que eu tinha visto antes: aquele funil certinho, com o fundo redondo. Como tinha chovido muito, a terra foi descendo: era uma lama descendo por um funil. Ao mesmo tempo era horrível e era lindo.
Depois disso, eu ainda pensava em fixar o espelho no fundo, mas percebi que esse trabalho, ao longo do tempo, não seria um trabalho fixo. Mesmo se eu colocasse o espelho, caso chovesse de novo, ninguém ia ver o espelho. Então eu fiquei achando que essa era uma proposição da terra para mim: “Como você vai lidar comigo agora?”.
Na última vez em que eu fui lá, o buraco tinha se tornado um lago. Tinha um espelho, mas era um espelho d’água, e já não dava para ver o buraco. Aí eu me coloquei na situação de experimentar esse espaço a partir do que ele me propôs – que foi esse laguinho. E aí fiz outros vídeos, que fazem parte desse trabalho também, que trazem o mesmo corpo que estava lidando com a marcação da terra, com a delimitação, agora lidando com esse buraco profundo e aquoso.
Você falou bastante do buraco, mas tem o outro elemento do trabalho, que é o monte. Como o monte se comportou nessa nova paisagem? Eu fico pensando nessa ação simultânea de cavar e criar o monte, e como é sempre isso: a gente tira uma coisa de um lugar, e ela vai para outro. Não dá para fazer desaparecer a matéria, e muito menos a terra.
Enquanto o Robson escavava, eu tirava essa terra e reservava num lugar que já estava meio cheio de terra. A minha ideia era transpor essa terra para o outro lado, mas não deu tempo. Sobre esse monte, o que aconteceu foi que ele quis voltar para dentro do buraco. A terra que eu tirei quis voltar. Naquele momento em que a gente foi lá ver, e tinha lama, já não tinha monte. A terra já tinha se espalhado, virado lama e entrado dentro do buraco de novo. Isso é interessante de pensar: a terra quis voltar para o lugar de onde eu tirei.
E a terra que você moveu pôde voltar, talvez justamente porque o seu gesto tinha uma escala humana. Agora imagina uma porção de terra que viajou daqui pra China… Você poderia falar um pouco também sobre a roupa que você produziu no início do trabalho, antes de começar a escavação?
Logo que eu decidi que ia conviver com a terra, colocar meu corpo na terra e ter essa relação mais próxima, me veio uma coisa na cabeça: eu não me colocaria nessa experiência de uma forma despreparada, corporalmente. Dentro dessa preparação do meu corpo, escolhi produzir uma roupa para fazer isso – seria a minha roupa de ter essa experiência. Eu decidi isso porque estava muito atravessada por uma questão: quando a gente muda a forma das coisas, a gente não muda só a forma, a gente muda o que ela é. E talvez eu gostaria disso para mim, naquele momento: de mudar minha forma, para mudar o que eu era naquela experiência.
É uma roupa que o tempo todo me preparava para a experiência, e também me fazia lembrar o tempo todo sobre o que eu estava fazendo. Uma roupa clara, crua, que aos poucos foi ficando amarronzada. Que eu lavava, e ela continuava marrom – e aí eu convivia com esses restos de terra no meu corpo. Eu fiquei usando a roupa o tempo todo, dormia, acordava, durante todo o período. A sensação corporal disso foi muito interessante, porque em alguns momentos eu pensava: “Eu preciso de cor”. Eu sentia falta de cor no meu corpo, as minhas cores eram todas da mesma paleta: o tecido, a pele, a terra.
Pode ser que isso tenha a ver com o choque de perceber o que a gente é: terra. Essa reflexão me remete a uma leitura possível do trabalho, que teria a ver com a ideia de voltar à terra. Em uma das culturas que a gente herda, existe mesmo essa separação entre o ser humano e a natureza, como se fossem entidades distintas. E no seu trabalho eu percebo essa proposta de entrar na terra, de se misturar a ela, ainda que como imagem. Já faz um tempo, ouvi alguma coisa como “a natureza não suporta o vazio”. E talvez isso tenha acontecido ali: se você deixa um espaço vazio, alguma coisa vai acontecer. Como se o vazio não fosse um caminho da natureza…
Talvez seja porque o vazio está conectado à imagem estática. O vazio só existe no parado, e o que movimenta não pode ser vazio. Às vezes, a gente acha que a terra está parada, mas ela se movimenta o tempo todo.
Essa relação entre o meu corpo e a terra foi uma das primeiras coisas que eu percebi quando comecei a ir no buraco, e isso me lembra o que falou uma mulher que conhecemos aqui, a Márcia. Uma vez, ela estava falando sobre a história aqui no bairro e disse assim: “Quando a gente está aqui, parece que a gente está limpo. Só que quando a gente chega em Belo Horizonte, a gente percebe que está sujo”.
A cor da terra fica impregnada na gente. A terra grudou em mim, no meu pé… Nas curvinhas todas, meu corpo está cheio de terra – vermelha. A gente é natureza, assim como tudo. Não dá pra pensar como se a gente fosse um outro ser, separado na natureza, que somente estaria “dentro” da natureza. Todos esses processos, inclusive o que você falou, de não suportar o vazio, são processos presentes também no nosso corpo, que é natureza. A gente parte do mesmo princípio: o movimento.
Talvez a gente pudesse falar um pouco mais sobre a questão da escala do seu gesto em relação à natureza, sobre a proposição de um gesto que tivesse a escala do seu corpo. No caso do trabalho, é interessante perceber como essa decisão fez com que a natureza conseguisse reverter o seu gesto – e quantos gestos irreversíveis a gente tem aqui, ao redor, justamente pelas dimensões de uma escala maluca? Quando você fala “Não quero fazer um gesto maior do que a escala do meu corpo”, o que você percebe por trás dessa escolha?
É como se eu quisesse conversar com você, e usasse um megafone na sua cara: não é essa a conversa. A conversa é isso: eu queria resposta, eu queria um diálogo. E aí tem a ver com o modo como você se coloca em uma situação possível de comunicação. Talvez o primeiro gesto de querer fazer as coisas na medida do meu corpo fosse uma negação desse outro lugar megalomaníaco, mas acabou se tornando também isso: um lugar possível de diálogo.
Que percepções e reflexões ficaram, depois de viver esse processo?
Uma coisa importante é que, antes, eu sempre tava falando e trabalhando a paisagem a partir do do pensamento sobre ela. Eu estava falando a partir do mapa, da vista, da paisagem, e eles estavam sempre na mesma relação de fala: eu falando “sobre”.
Esse foi o primeiro trabalho em que eu me propus a realmente estar naquela paisagem, realizando uma ação, fazendo, mexendo na configuração dela, nas bordas, nos formatos.
Eu não consigo te falar o que isso muda em mim, o que eu consigo falar é sobre essas forças que me atravessam. Mudar a cor do meu corpo, passar por essa dificuldade de acessar esse lugar, de furar, de cavar. Entender o tanto que essa terra é batida, é dura. E entender isso no meu corpo, porque na ideia talvez eu já tivesse imaginado que seria assim.