Alexandre Brandão (BR)

Alexandre Brandão (BR)


Sua pesquisa recente embaralha processos da natureza e da cultura e aborda o fascínio pela fenomenologia dos materiais. Utilizando-se de técnicas como desenho, escultura, vídeo, fotografia, obras com luz, objetos e instalações, sua prática combina sensorialidade, tempo, processos físicos e químicos com métodos artesanais de produção. Tem participado de exposições incluindo “6o Bolsa Pampulha” (Belo Horizonte, 2016); “Taipa Tapume” (São Paulo, 2014); 18o e 17o “Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC Videobrasil” (São Paulo, 2013 e 2011); e as exposições individuais “Experimentos com o acaso” (Paris, França, 2016); “Chão” (São Paulo, 2015); “Efeito sem Causa” (São Paulo, 2013); entre outras. Em 2014 ganhou o prêmio “Bolsa de Residência Artística ICCo / SP-Arte” na instituição Residency Unlimited (Nova York, EUA). alexandrebrandao.com


[TEXTO] A matéria em transição




Programa de Residências Internacionais – 2017 – Paisagem aberta

Comecei minhas andanças pelo Jardim Canadá assim que acomodei a bagagem no contêiner que me serviria de quarto e me abrigaria pelos próximos dois meses. É significativo instalar-se por esse período em uma caixa de grandes dimensões destinada a transportar coisas de um lugar a outro, em princípio uma habitação provisória de objetos que atua no trânsito entre dois pontos do tempo e do espaço. Aumentava ainda mais a sensação de estar em um lugar onde a ideia de permanência é tão escapável, um lugar onde tudo parece suspenso em uma transição para alguma escala temporal – futuro ou passado – ainda desconhecida. A ideia da caminhada era justamente começar a ver alguns lotes vagos, base do projeto a ser desenvolvido durante esse período, e entender como são feitas as placas que anunciam aqueles terrenos para venda ou locação. Uma pesquisa de matérias: esses anúncios são formatados ora sobre faixas de tecido ora em chapas de PVC ou metal fixadas nas cercas de arame farpado ou em estacas fincadas no chão. Queria apropriar-me da mesma formatação desses aparatos na produção de intervenções que mantivessem uma certa naturalidade com o ambiente. O estranhamento dessas pinturas a serem espalhadas pelo bairro viria justamente dessa mimese silenciosa.

Daí o encontro casual com o anúncio de uma imobiliária local informando seu endereço dispara a ideia de pesquisar onde e com quem são feitas as placas que servem aos propósitos comerciais destas empresas nas negociações dos terrenos baldios. Ao invés de tentar eu mesmo produzir esses objetos, conforme havia planejado em um primeiro momento, eu passaria a atuar dentro do sistema de contratos de serviços que movimentam parte do universo imobilário da região. Apropriar-me dos mecanismos de informação e fornecedores já estabelecidos pelas empresas locais na venda e administração dos lotes sem uso. A partir da visita à MR Imóveis e sua indicação, as placas que serviriam de suporte para minhas pinturas passaram a ser produzidas pelo Hermes, da HR Comunicação, empreendimento domiciliar especializado em sinalização, e posteriormente com a gráfica Visão, empresa de maior porte, voltada para serviços gráficos. As especificações para as placas seguiram os padrões de tamanho e estrutura comumente utilizadas para esse tipo de serviço. Elas foram confeccionadas em aço carbono, material que se oxida com certa facilidade, com 40cm de altura e 50cm de largura, montadas em pontaletes de madeira de 150cm, de modo que depois de enterradas nos lotes teriam a altura máxima aproximada de 120cm. Definidos os parâmetros para começar a produzir as placas-pinturas, a partir de agora era determinar em quais terrenos instalá-las. Para isso, deslocar-me diariamente pelo bairro parecia ser o melhor método.

Ao andar pelo bairro a pé ou de bicicleta em suas calçadas interrompidas pelos matagais, em meio ao onipresente cheiro acre de esgoto despejado na rua, percebe-se a atmosfera de um espaço rarefeito e inacabado. Os lotes vagos dão a sensação de trechos vazios onde se aloja a possibilidade de futuro, este muitas vezes em interminável espera nos alicerces deixados pela metade e estruturas metálicas já enferrujadas antes mesmo de serem concluídas. O Jardim Canadá, isolado de qualquer aglomerado urbano denso, tem seus limites definidos nas bordas com a vastidão das montanhas, parte ainda em seu estado natural, outra já esculpida pela ação da mineração. É curioso deslocar-se pelas vias que formam seu contorno. De um lado do circuito uma estrada estreita cuja cerca, que a acompanha em toda a sua extensão, indica a posse de um terreno desabitado, ainda em estado bruto, grande parte do Parque Estadual da Serra do Rola Moça. A outra metade desse contorno bem de nido é ladeada pela cerca viva de pinheiros, completamente dissociada da natureza local, que juntamente com o arame farpado e as placas intimidatórias indicam que aquela terra é propriedade da mineradora que a explora. Ao percorrer esta borda, parece que caminhamos no traçado de um grande desenho preenchido em seu interior por edificações e terrenos vagos que sinalizam a ocupação humana do bairro. Os vazios que o constituem nos lembram a todo instante que o Jardim Canadá segue um ritmo lento por sobre a paisagem em direção ao “por vir” ou o “por se erguer”. Assim como na Passaic descrita por Robert Smithson, um lugar sem passado racional e sem os grandes eventos da história, apenas o que passa para o futuro. Nesse caso de maneira lenta. Uma passagem de tempo diferente dos grandes centros, onde a ordem é ocupar qualquer trecho vago com rapidez e efetividade, não deixar intervalos, fazer da cidade um todo contínuo. No Jardim Canadá a grande quantidade de lotes vazios que não foram ocupados de maneira ilegal ou que não abrigam grandes depósitos e algumas casas, estão ali em oferta à espera de que participem também da história, que entrem no ciclo da temporalidade, no conjunto dinâmico dos feitos humanos. Assim vagos, mais parecem ocupar um intervalo de tempo suspenso onde só o mato progride.

Paisagem aberta: atuar nestes vazios não no sentido de preenchê- los mas de potencializar essa ausência, multiplicá-la. As placas-pinturas carregam imagens que se voltam para a paisagem local e naturalmente servem de comentário sobre esse gênero pictórico. Pintura de paisagem, feita com fragmentos da paisagem e instaladas sobre essa mesma paisagem. Produzidas com tinta à base de terra, funcionam como estudos sobre a geografia local tendo como referência a geometria das fachadas dos galpões (elementos tão comuns na região) numa espécie de catalogação de formas recursivas compostas por triângulos, quadrados e semi-círculos que criam um alfabeto analítico do espaço. Paisagem artificial e mínima traçada por linhas retas e curvas. Apesar de toda a carga material que carregam, como a grossa camada de tinta de terra e o aço que vai se enferrujando pouco a pouco, esses desenhos que passam a ocupar os lotes vagos têm algo de imaterial, como croquis de edificações não construídas ou relevos geográficos fictícios. São arquiteturas fabricadas com a poeira do próprio lugar que, ambíguas, habitam um domínio entre a abstração e a figuração, entre o esconder e o revelar, borrando a função informativa dessa mídia com signos opacos, sem referente de nido. Instaladas nos terrenos baldios, em sobreposição à paisagem circundante, apontam para o que não está ali naquele espaço vago, uma imagem que tende ao desaparecimento sob a ruína de seu suporte, como a memória efêmera de algo que nunca chegou a existir. Quanto aos lotes escolhidos para alojarem as intervenções – oito no total – seis foram negociados com uma imobiliária local e oferecidos de acordo com sua disponibilidade, o que deu às placas a distribuição geográfica pelo bairro de maneira não prevista durante o processo.

O método de fabricação da tinta parte dos pigmentos retirados da terra aberta no processo de loteamento da região. Grandes torrões de solo vermelho, colhidos de um profundo barranco em terreno escavado por alguma máquina enorme são triturados e peneirados em pó muito no para depois serem misturados com água e cola. Barro e ferro. A tinta artesanal não deixa de ser um barro com cola PVA – híbrido de natureza e cultura. O barro, antigo, parece ultrapassar o tempo. Matéria imemorial. Já o ferro, produto máximo da indústria, matéria-prima transformada, é marcado pelo signo do novo, da tecnologia, de um tempo futuro. Os dois se fundem nesses desenhos de fachadas-montanhas, arquiteturas geológicas. A oxidação irreversível – espécie de pigmento ativo – unirá os dois em uma mesma temporalidade em algum ponto do futuro. Somado a isso, os formatos geométricos das arquiteturas dos galpões, símbolo universal da alta industrialização. Todo o trabalho parece orbitar ao redor de um mesmo elemento. O minério de ferro que se transforma em aço que se torna ferrugem. Um circuito se estabelece na superfície dessas placas.

Terra vermelha, cor local, ganha a coloração rubra pelo óxido de ferro que a compõe. Tudo aqui parece feito da mesma matéria-prima. As chapas de alumínio ondulado e estruturas de ferro que sustentam os galpões, as máquinas que só cessam seus movimentos no fim da tarde, os portões de ferro e carcaças de veículos espalhadas pelas ruas se desintegram com a ferrugem. Terra à terra. As placas agora instaladas pelo bairro seguirão a mesma direção. Com o tempo seu ferro industrial se transformará em ferrugem, apagando o desenho sobre ele e se metamorfoseando com o espaço que agora ocupa.

Smithson, no relato de sua expedição pela periferia de New Jersey, assinala os vazios monumentais de Passaic como uma série de “futuros abandonados”. No Jardim Canadá, a falta não está só caracterizada pelo vazio dos terrenos baldios mas também reveladas em algumas arquiteturas falhas ou temporárias, presenças fantasmáticas que mais se parecem com monumentos à ausência. Uma fachada de tecido como uma enorme tenda ou cenário teatral sombrio, o esqueleto de galpão abandonado em seu processo de construção, um depósito de contêineres a céu aberto e mais ao meio da rua a mansão deserta com seus vergalhões que desenham um cômodo que nunca será construído. Monumentos que relativizam a ideia de passado, presente e futuro demolindo a noção moderna do tempo como uma linha fluida e irreversível a ultrapassar o passado em uma marcha progressiva em direção a algum futuro promissor. Dos restos dessa ruína ergue-se em seu lugar uma percepção de tempo anti-cronólogica, composta de temporalidades múltiplas e dissonantes a compor a paisagem particular do Jardim Canadá.

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