O apocalipse está na mesa

O apocalipse está na mesa





por Daniel Toledo

“Se não têm pão, que comam brioches”, dizem ter proferido certa rainha austríaca, pouco antes de perder a cabeça no desfecho da famigerada Revolução Francesa, ali no século XVIII. Bem antes disso, já na chamada Antiguidade, entretanto, o pão havia feito história, servindo como um dos marcos do contexto social em que, com a introdução da agricultura, o nomadismo foi substituído pelo sedentarismo, cerca de seis mil anos atrás. Utilizado como moeda já no Egito Antigo, o pão servia como marco econômico ainda na Europa do século XVIII. E foi após o decretar que a produção de pães seria regulada e restrita a poucos, que se ouviu a tal famosa frase proferida pela dita última rainha da terra dos brioches.

Eram, no entanto, a massa do pão e suas propriedades, e não propriamente por sua história política, que interessavam à artista Mayana Redin, quando aproximou do alimento como matéria de trabalho e pesquisa. “Eu cheguei na farinha a partir da argila, muito interessada pelo elemento orgânico que a farinha traz. Me interessava o apodrecimento e o envelhecimento da matéria, remetendo a um material mais profano, mais baixo e distante da promessa de eternidade dos materiais da escultura”, resume.

Em experiências anteriores a passagem pelo Jardim Canadá, Mayana havia preparado pães recheados com livros de ciência e astronomia que remetiam aos anos 1960. “Foi naquele momento histórico em que começou a circular a imagem científica do universo, a qual, até então, era mais fabular, mais turva. Dali em diante, a partir das viagens espaciais e dessa aproximação técnica com o cosmos, essas imagens passaram a fazer parte do senso comum, de modo que alguns mitos começaram a se transformar”, narra a artista, que chegou ao JA.CA interessada em desdobrar tal investigação.

Se, antes, os trabalhos experimentavam contrastes entre o tempo cósmico do universo e o tempo cotidiano do pão, dessa vez, a investigação se voltou à coincidência entre dois processos diários – talvez simultâneos – de digestão. “A proposta era trabalhar com outro elemento, o jornal diário, uma medida tão cotidiana quanto o próprio pão, pensando, conceitualmente, na digestão cotidiana da coisa, no ritmo do consumo diário”, explica.

Entre as notícias e imagens folheadas, lhe interessavam aquelas que apontavam a algum tipo de desestabilização da realidade. “Comecei a me interessar por imagens de quando as coisas perdem o controle e a estabilidade. Explosões, rios espumando ou mesmo notícias que tenham certa dimensão fantástica”, exemplifica a artista, que aponta filmes de ficção científica como importantes referências durante essa e outras pesquisas.

“Isso não é um pão”. Além de ocupar-se de variados recheios e diferentes perspectivas conceituais, Mayana ainda estendeu sua pesquisa ao próprio processo de fabricação do alimento. “Estive sempre dividida entre essa espécie de massa alienígena que dá origem ao pão e também as suas dimensões políticas e econômicas. Meu interesse não era exatamente fazer um pão maravilhoso para se comer, mas sobretudo conhecer a matéria, a massa, o pão em si”.

Para tanto, a artista se matriculou, num primeiro momento, em um curso de alta gastronomia oferecido no bairro Jardim Canadá, voltado a um público elitizado e com ares de “gourmet”. Mais tarde, gastou algumas horas com a padeira responsável por abastecer, todos os dias, com o humilde “pão francês”, a mesa de boa parte dos moradores da área onde se localiza o próprio JA.CA.

“Ao longo do curso, pude perceber que o pão é uma matéria apropriada por ideologias muito diferentes, a partir de uma discursividade que pode agregar valor econômico e certo status, inclusive. Há quem trabalhe com o produto a partir de um discurso de resgate histórico, mas que se distancia profundamente dos saberes populares do subúrbio, por exemplo. Parece ser uma aproximação por outra via, em que você elitiza alguma coisa para alcançar a simplicidade”, observa.

Talvez como resposta a essa aparente invisibilidade do contexto sobre parte da produção local, Mayana deu início a uma coleção de objetos encontrados na região, recorrentemente invisibilizados pela terra laranja que paira no ar. “Além de misturar terra à massa de alguns pães, produzi alguns recheados com pedras que encontrei por aqui. Comecei também a colecionar objetos esmagados por carros, na estrada”, enumera a artista, fazendo referência a certa atmosfera pós-apocalíptica que paira sobre alguns pontos do bairro.

A potência da desordem. Após se aproximar e conhecer de perto diferentes faces do contexto local relacionado à fabricação de pães, Mayana lançou-se a uma nova etapa do trabalho: devolver ao bairro os pães produzidos durante a residência artística. “Expor ou vender arte na padaria me parecia ser um modo de devolver esse conhecimento que apreendi aqui. Um modo de lembrar que o jornal, assim como o pão, são objetos frescos, mas que apodrecem juntos. Assim como os pães, as notícias ficam a cada dia mais velhas, e dessa maneira podem se liberar de suas finalidades iniciais para virarem objeto de arte. Comecei a me interessar pelo processo de transformação temporal, mas também conceitual, desses objetos”, compara.

A solução encontrada pela artista foi instalar uma grande estante à frente a uma mercearia do bairro, na mesma região onde havia aprendido a produzir o típico “pão francês”. Distribuídos entre sete prateleiras, moldados nos mais diferentes formatos, os pães foram organizados segundo a própria data de fabricação, descendo uma prateleira a cada novo dia. Conforme a profecia anunciada pela artista, envelheceram, endureceram e mofaram, pouco a pouco, aos olhos dos clientes.

“Me parecia interessante explorar o elemento estranho do objeto, tanto pelo viés dessa matéria informe que fermenta e aumenta de tamanho, fagocitando tudo, quanto pelo objeto final resultante. O fato de coisas tão comuns virarem, de repente, algo totalmente estranho a partir de um gesto simples de colocá-los em um mesmo espaço acabou gerando um impasse de como consumí-los. Não se pode, afinal, comer o pão, nem ler o jornal. Esse movimento de impedimento de consumo também passou a me interessar como trabalho de arte. Vivemos um momento curto de relativa harmonia em meio a uma história mundial repleta de instabilidade, e o desmoronamento da ordem das coisas é sempre uma possibilidade”, reflete.

Ao contrário do que se poderia pensar, no entanto, Mayana enxerga nessa distopia uma fonte de potência artística, e não um lamento. “Acredito que existe, de fato, uma potência de vida na desordem. É sempre preciso que algo desmorone para que outras coisas possam surgir. Além disso, a ordem sempre esconde a desordem, é fascista e define lugares nem sempre desejados por aqueles que os ocupam”, completa.

Vivendo atualmente no Rio de Janeiro, a artista recorre a Robert Smithson para lembrar que os desmoronamentos, aqui entendidos como caminhos de mudança, costumam estar mais associados às regiões de periferia, como é o caso do Jardim Canadá, do que aos centros do poder. E que tanto os sinais como a efetiva direção dessa possível transformação podem estar, de fato, em qualquer lugar, inclusive na padaria ou na mesa de café da manhã. “Se vivemos, de fato, um processo de perceber e entender o apocalipse, pode ser difícil precisar o seu ponto de início”, sentencia.

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